domingo, 6 de março de 2011

PEQUENOS GESTOS DO COTIDIANO BURGUÊS (conto)

  (Conto do livro "As Várias Maneiras de Amar" - Isa Magalhães)
       A mesa estava posta. Talheres de prata, pratos brancos, guardanapos brancos, tudo como Alberto gosta.
     - O jantar está na mesa, querido! – A voz soa em falseta, talvez pelo medo de interromper o marido no escritório. Olha em volta, a casa antiga, os móveis herdados de tantos avós que não sabia o que pertencerá a quem, a tradição. Respira fundo ajeitando a gola de renda do vestido cinza, meio abafada pelo colar de perolas e talvez pelas lagrimas engolidas. Quarenta e cinco anos de casada, três filhos, cinco netos... Lembra de Albertinho, o filho mais velho. O peito ainda doí quando a cena da confissão, como o filho chamou, vem a sua mente como um filme em branco e preto. Era o jantar das quintas-feiras, quando reunia toda a família.
    - Queridos pais, querida família, tenho uma confissão muito importante a fazê-los... Eu sou gay! – Albertinho abre um grande sorriso como para amenizar suas palavras.
     - É mesmo filho, e desde quando? – Pelo tom da voz de Alberto – o pai, via-se que não tinha acreditado na confissão do filho.
   - Pai, eu sou GAY! E estou casado com André desde maio. – André, o amigo de todas as horas estava branco, e parecia que ia afundar mesa abaixo diante do olhar de todos.          
   - Pouca vergonha! Safadeza! Não admito isso na minha família! Retire-se da minha casa imediatamente seu... sua aberração! – Os gritos de Alberto ecoaram como urros de  animal ferido. Dor, decepção, vergonha. Todos os sentimentos podiam ser vistos no rosto do velho homem.
Ela, parada, perdida, apertando a gola do vestido chorando num silêncio de mãe. Olhava para o filho procurando entender o que ele dizia. “Como casado? Eram dois homens! Isso vai contra as leis de Deus!”.   
 Depois desse dia Albertinho nunca mais telefonou, nunca mais se ouviu seu riso alegre que aquecia a casa ancestral. Sabia que estava bem pela faxineira que compartilhavam. “Ah, o Dr. Albertinho tá muito bem mais o Dr. André. São tão amigos....”. E contava num tom meio petulante, de intimidade, como eles adoravam receber os amigos, que quase todo dia tinha um jantar onde só iam homens e era um trabalhão arrumar tudo no outro dia.
    - Perdidas em pensamentos, querida? – A voz do marido lhe assusta um pouco. Ele agora deu para dizer que só tinha dois filhos e que o mais velho tinha morrido. Seu coração se aperta ao olhar os olhos azuis do marido. Tão amado! Nem parece que já estão juntos há tantos anos. Se não fosse o gênio tirânico do marido, poderia dizer que sua vida era perfeita.
    - Oh, querido, nem notei você entrando... Não, estava só lembrando que temos convidados para o jantar na sexta-feira.
    - E esses olhos lacrimejantes? Você não me engana, querida. Pensado naquele... Você sabe em quem! – Ele não ousa nem a pronunciar a palavra filho, ou dizer o nome, que era o mesmo que o seu.
     Ele amava a mulher mais que qualquer coisa. Conheceram-se num final de semana na casa de amigos e nunca mais se separaram. Havia jurado, aos pés do padre, ama-la e respeita-la e tinha feito isso por quase cinco décadas, mas perdoar o filho jamais! Além do mais, o culpava pela doença dela.
    Logo após a confissão, Ana Amélia adoecera. Primeiro uma dor no braço, que evoluiu para uma dor nas costas, e finalmente descobriram o maldito câncer no pulmão esquerdo. Foi à tristeza, tinha certeza disso. Sabia que ela morreria em breve, mas não agüentava pensar nisso. Não agüentava pensar na vida sem o sorriso meigo, a paz que a presença de Ana Amélia lhe transmitia.
     Sabia que depois do jantar passeariam pelo jardim bem cuidado, tomariam vinho sentados no banco de madeira perto da capelinha de Santa Edwiges entre roseiras brancas, e relembrariam o passado. As viagens, as festas, as histórias engraçadas dos netos. Nesses momentos, a vida passava como gotas homeopáticas, suave, quase como um suspiro. E ele queria assim, para perpetuar o sabor do encontro, eternizando a vida nos pequenos gestos do cotidiano. Ao deitarem, dormiriam de mãos dadas, um velando o sono do outro, como bons cristãos... Mas perdoar o filho? Nunca!

(do livro “As Varias Maneiras de Amar” – contos - 1999, Fortaleza/Ce)

2 comentários:

  1. Ótimo texto, dá vontade de ler mais...
    Convido-te a conhecer meu blog.

    http://www.sabordaletra.blogspot.com/

    Abraços

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  2. o texto consegue engolir agente..é como se estivémos lá, ao lado do casal...parabéns!

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