sábado, 5 de março de 2011

OS RECÉM-NASCIDOS ESTÃO CHORANDO (conto)

Sentada em frente à janela aberta, ela espera os primeiros raios do sol. Ainda há resto de choro pela casa, ecoando como uivos assombrados, perdidos no vazio dos cômodos abandonados há anos. Ela pensa: “Esta noite eles estiveram impossíveis. Não pararam de chorar um instante sequer...”. Ela passara a noite em claro, estava cansada. Nem mesmo as canções de ninar os acalmaram. Parecia que nada os fariam parar com aquele choro lamentoso, sofrido, de cobranças e medo. Sons lhe resgatando dívidas do passado, levantando-lhe emoções enterradas com pequenos corpos arroxeados.
Casou-se Jovem. O marido, com o dobro de sua idade, queria filhos, muitos filhos. Encheria com vozes, gritos, vida, o casarão antigo em que moravam, costumava dizer ele. Não contradizia os planos do marido, porém, apavora-se com a ideia. Adorava a casa vazia, o silêncio lúgubre dos corredores enchendo cada canto, móvel ou paredes de harmoniosa ausência. Crianças quebrariam aquela suave falta de sonoridade que mergulhava em paz seus dias.
A cada insistência do marido, mais repudiante lhe parecia à ideia. Passou mesmo a odiar crianças, seres que invadir-lhe-iam a vida, a casa, tirando-lhe o gosto da solidão, companheira querida. E foi com total repulsa que percebeu a gravidez, meses mais tarde. O marido eufórico encheu-a de presentes delicados, esperando ver um pouco de felicidade no rosto pálido, fechado, angustiado. Mas nada que fizesse adiantaria ou faria desaparecer a depressão que a fazia mergulhar num mundo ilusório, fuga última para o esquecimento da gravidez indesejada.
Passava os dias trancada no quarto, olhando o teto, apática a tudo. Conversava com as paredes da casa, sua única amiga. Uma noite, o marido dormindo profundamente, ela levantou-se. Sentia-se estranha, pesada, com falta de ar e umas leves dores no baixo ventre. Andou pela casa, pelos corredores escuros, sentindo amor por cada pedaço, canto escondido atrás de móveis, quadros, teias de aranhas quase seculares, despercebidas pelos empregados de tão ocultas. Respirou fundo, procurando guardar dentro de si o ar abafado e úmido da sala.
Sentiu sede, boca amarga, seca. A cozinha grande era banhada pelas sombras de velhos armários que lhe dava um aspecto irreal. Deixou cair o copo com água quando sentiu a primeira dor lhe rasgando as entranhas. A segunda a fez se baixar entre as pernas, e a terceira deixou-lhe com a barriga dura, torta para um lado. Em completo terror, ela pensava em garras invisíveis dilacerando-lhe o corpo de alto a baixo.
Quis gritar. Não conseguia de tão intensas que eram as dores. Contrações fortes, peso no ventre querendo romper a vagina. Um líquido morno, espesso, molhou suas pernas, instintivamente agachou-se e como um animal assustado, pariu. Por alguns minutos ficou olhando aquela coisa arroxeada, envolta em sangue, sem saber o que fazer. Por fim, com certo nojo, pegou a criança no colo. E tudo foi extremamente rápido. Miúdo e escorregadio, o recém-nascido deslizou por entre suas mãos como um pequeno fardo. Nem um gemido, apenas um barulho surdo e o corpinho imóvel. Gritou alto.
O marido enterrou a criança no fundo do jardim. Não foi ao enterro, preferiu ignorar tudo. Sentia-se livre e feliz novamente. Vagava pela casa como se nada houvesse acontecido, cuidando das plantas do jardim enquanto cantarolava boleros românticos.
Um ano depois, novamente grávida, novamente refugiada num mundo de fantasias e depressões. Odiou o marido. Ele era o culpado por tamanho incômodo. A única amiga era a casa. Conversavam, armavam pequenos complôs. Dias, meses, passando rápido sem serem percebidos por ela. O marido já não lhe dava tanta atenção. Vivia viajando, dormindo noites fora. Uma madrugada, ele ausente, as dores voltaram. Não se assustou. Gritou alto, fez força e nasceu o segundo filho, que foi prontamente sufocado com o lençol da cama. Enterrou o pequeno corpo sob a escada do porão. Ao marido, apenas a desculpa que o filho nascera morto.
Vieram muitas outras gravidezes, porém, nenhuma criança sobreviveu às suas crises de ódio. Estrangulava-as, sufocava-as ou simplesmente as deixavam morrer de inanição. O marido acreditando ser o acaso do destino, as mortes dos filhos. Algum tempo depois, também morreu. Ela, aliviada, pensou que finalmente estava livre.
Viveu alguns meses em eufórica sensação de paz, comunhão perfeita com a casa, até que tudo começou. Primeiro os pesadelos. Pequeninos corpos arroxeados e sangrentos lhe abraçando, sufocando-a sem piedade. Acordava trêmula. Depois, mal escurecia, os sons de várias crianças recém-nascidas chorando ecoavam pela casa, enlouquecendo-a. De nada adiantava fechar os ouvidos, os sons pareciam vir de todos os lugares, inclusive de dentro dela mesmo. Passou a cantar velhas canções de ninar para abafar os choros e aliviar a tensão. Notou que quando cantava, eles paravam, pareciam ouvi-la. E então, como uma mãe extremosa, passou a cantar, ninando os filhos mortos noite adentro até ao amanhecer.
Sobre as copas das árvores do jardim o céu clareava. Sai de perto da janela. Suspira aliviada, procurando refrescar a garganta dolorida pelas horas ininterruptas de canto, com um gole d’água. A casa está em silêncio. Fecha a janela devagar, com medo de acordá-los. Antes de sair do quarto pintado de azul e rosa, enfeitado com delicados móbiles de palhacinhos vermelhos que dançam rodopiando no ar, lança um olhar de carinho e zelo para os berços enfileirados junto à parede, onde imóveis, os ossos descarnados de alguns recém-nascidos jazem empoeirados.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

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