sábado, 5 de março de 2011

OS ANCESTRAIS

Lembrava-se vagamente dos primeiros contatos com os fantasmas da família. Após sua última viagem, cansado, doente, com o peso da velhice e solidão trazendo-lhe depressões, voltou ao velho solar, e por essa época aconteceram às primeiras visitas.
Uma noite, logo depois do jantar, procurou a varanda da casa sentindo necessidade de integrar-se ao vazio da noite. Deprimido, pensava em suicídio. O desejo frio de acabar com tudo crescia aos poucos, como parasitas sugando-lhe a razão. Ela apareceu com o silencio peculiar dos fantasmas, sentou-se ao seu lado e riu alto.
- Não vejo nenhuma razão para rir- falou ele.
- Nem eu. Mas deu vontade. Sabe que eu costumava ficar aqui mesmo nesta varanda, quando todos se recolhiam, para rir das minhas angústias?
- E de que adiantava isso?
- Nada. Mas aliviava!
E os dois riram a noite quase toda. Ela era assim, a tia-avó, irmã mais moça de seu avô, que morrera quando ele ainda era criança. Encontravam-se quase todos os dias na varanda, falavam coisa a esmo, tolices, mas que o ajudava a atravessar a crise existencial daqueles dias.
Tempos depois apareceu o bisavô e os outros, começando as longas sessões noturnas. Noites sem fim, enclausurado sob o peso das acusações, gritos histéricos, raivosos, saídos das bocas descarnadas dos ancestrais.
Ele era o último de uma numerosa família que findaria sem descendentes diretos e esse pensamento longe de amargurá-lo, causava-lhe prazer. Os antepassados, porém, fanáticos inquisidores da descendência familiar, não o perdoavam.
- Maldito, negas o sagrado direito da continuidade, da perpetuação do nome e sangue de uma casta? Pois queimarás a eternidade no círculo do arrependimento! Nós, os teus antepassados, te amaldiçoamos!
As palavras de infortúnio do bisavô, antigo coronel da milícia real, ecoavam proféticas por entre as grossas paredes da casa. Os outros parentes, a tia-avó lunática, a tataravô altiva, irônica e ferina, sempre acompanhada de um primo, rapaz calado, olhar frio e calculista, que segundo boatos de família fora seu amante em vida, nada falavam. Deixavam para o bisavô o encargo de acusá-lo. E noite após noite o julgaram sem piedade. O fato de não ter casado, constituído família, filhos para carregassem o insano estigma de um sobrenome, os enlouqueciam.
Não adiantava contar-lhe das viagens, das aventuras em mares de céu aberto cheirando a sal e séculos, desertos solitários, florestas verdes, cidades, prostíbulos, amores clandestinos. Passageiros, mas intensos.
- Lembranças, de que valem as lembranças se não tens a quem contar? Sentimentalismo barato! O que fica da vida é o que se constrói de sólido. Família, filhos que gerarão filhos bens, casas como esta. Viver é isto, não essas aventuras furtivas! – Os gritos do bisavô sempre lhe interrompiam os pensamentos.
Acostumado ao tribunal noturno sentava-se ao anoitecer na sala de estar, cachimbo exalando cheiro de tabaco irlandês, cálice de genebra na mão, à espera dos ancestrais. Chegavam pontuais, silenciosos, etéreos como a fumaça vertida pelo cachimbo. Às vezes divertia-se em vê-los, fantasmas transparentes andando pela sala nervosos, tocando objetos, narrando histórias, como se procurassem resgatar um tempo perdido.
Alguns anos depois, os fantasmas ainda continuavam com as visitas, falando as mesmas coisas, repetindo os mesmos gestos, como num filme rodado diversas vezes. Vencido pela monotonia e a raiva que aos poucos ia nutrindo pelos ancestrais, traçou um plano de vingança. Iria se mataria, e quando eles chegassem com seus discursos pomposos, perceberiam que ele já não existia como matéria física, mas como deles. Sorriu, procurando imaginar a decepção dos antepassados. Apenas uma coisa começava a preocupá-lo. Se não deixava descendentes, quem contaria as suas aventuras num misto de orgulho e saudade, ou choraria no seu túmulo no dia de finados, com flores e velas? Morreria e o mundo jamais saberia de sua existência. Acendeu o cachimbo com mãos trêmulas de velhice. À noite e os fantasmas o encontraram ainda na gasta poltrona de veludo azul.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

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