sábado, 5 de março de 2011

O DIÁRIO DA SUICIDA (conto)


Olhei fascinada, para os retratos que caíram das páginas corroídas do diário. Era como uma viagem no tempo, resgatando imagens de um passado que não conheci. Um homem, roupas elegantes, sorriso indefinido. Achou-o sedutor, quase sinistro. Na dedicatória meio apagada qualquer coisa como “a Leocádia com amor” e uma data: Janeiro de 1939. A assinatura era ilegível. Um pouco maior, a outra fotografia mostrava uma moça de rosto delicado, abraçada a um buquê de flores do campo. Parecia feliz emoldurada pela aura de inocência que transparecia na letra miúda, feminina da dedicatória da foto. Palavras de carinho para alguém chamado Maurício, sem dúvida o homem da outra foto.

Descobri o diário havia por acaso. Estava limpando uma escrivaninha que pertenceu ao meu avô, quando percebi um fundo falso em uma das gavetas. Envolto com papéis de seda desbotados estava o livreto de encadernação em couro preto com as iniciais LB. O sobrenome sem duvida era Bastos, da família de seu avô. E o L era de Leocádia... Pedaços de histórias da família brotam em pequenos flashes na minha mente. Leocádia, a irmã mistério de meu avô, aquela onde os rostos se fechavam quando perguntávamos quem era. Uma vida nunca era comentada, tabu calado, sufocado como o mais inviolável dos segredos de família.

Sempre pensei nessa tia como uma velha solteirona, talvez esquisita e cheia de manias. Nunca esperei este rosto angelical, quase bonito, lembrando-me vagamente o da minha mãe quando jovem. Mais isso não era extraordinário, pouco conhecíamos sobre a vida dessa tia, apenas que era a irmã mais nova de meu avô. Sem perda de tempo, acomodo-me no divã da sala com o diário entre as mãos.

“Novembro, 1939”.
“Ganhei da prima Inácia, como presente de aniversário, esta brochura, na qual aproveitei para desabafar meus pensamentos. É noite. Todos dormem e escuto o barulho de suas respirações batendo contra as paredes do meu quarto. Estou angustiada e infeliz. Maurício viajou há duas semanas e não me mandou notícia alguma. O que terá lhe acontecido? Será que me esqueceu? Acho que não terei a paciência de Penélope à espera de seu Ulisses.”
“(...) que insondável é a alma de homem. Em que águas escuras mergulham seus pensamentos? Maurício, Maurício, onde tu te encontras meu amor? Que ventos arrebataram-te de meus braços?”.

“Dezembro, 1919”.
“Todos estão preocupados comigo. Há dias que não saio do quarto e alimento-me apenas de sucos ou sopas. São uns tolos! Estão pensando só em meu corpo, minha carne perecível. E na minha alma, quem pensa? Quase quatro semanas sem uma única linha, um bilhete sequer! Mauricio, em que caminhos tu te perdestes? Será que terei de descer aos infernos para consultar Teiresias sobre teu paradeiro? Ou será que já moras na casa de Hades e sua Perséfone?”.

“(...) Felicidade, Anael – anjo do amor - escutou minhas preces! Maurício escreveu uma longa e terna carta. Regressa amanhã e ficaremos noivos. Parece um sonho, um coloridíssimo, azul, rosa, amarelo, branco, branquinho sonho de amor!”
“(...) Marcamos a data do casamento para maio. É tão mais romântico. O mês das flores, de Nossa Senhora. Até mesmo o nome é gostoso de escrever, pronunciar – maio! M-a-i-o!”.

“Janeiro, 1920”.
“Ontem fomos, eu e mamãe, à casa de dona Maria Quitéria encomendar o enxoval. Toalhas, lençóis, camisolas, tudo em renda francesa e linho. A família não aceita bem nosso casamento, eu sei. Mas é só uma questão de tempo para todos amarem Mauricio, como eu amo!”

“Março, 1920”.
“Há algum tempo que não escrevo. Também pudera, são tantos os compromissos! Compras do enxoval, provas do vestido... estou cansada... e triste. Maurício viaja em excesso. Fico tanto tempo sozinha que penso por vezes, não ter noivo, que tudo realmente não passa de um sonho. Diz ele que trabalha por nosso futuro, por minha segurança. Não sei, gostaria de ter um futuro mais pobre e tê-lo mais tempo ao meu lado. Sinto falta da sua voz, do cheiro da pele... ai, se mamãe lesse o que escrevo na certa diria que sou uma perdida! Não importa, estou noiva, vou casar. Mulheres só ficam perdidas quando não têm homens. Até a mais reles das prostitutas fica respeitada quando tem seu cafetão! É a celebre história do homem sempre tentando engolir nosso mundo. Se tudo no universo é masculino para que serve a mulher?’’

“(...) Estou enlutada, revoltada. O céu fechou-se sobre mim, sobre minha dor. O mundo é cruel, as pessoas são cruéis! Quem me mandou essa carta, essa maldita carta? Não acredito que o meu Mauricio tenha mulher e filhos no interior do Estado! Não, ele só tem a mim, sua doce violeta, como sempre me chama. Irei trancar-me nesse quarto e só sairei quando me disserem que tudo não passa de uma brincadeira, uma maldita brincadeira! ’’.

“(...) Maurício veio ver-me hoje. Achou-me pálida, doentia. Pareceu preocupado. Não tive coragem para contar-lhe da carta anônima. Tenho medo que se aborreça, pense que não tenho confiança nele. Pobre Maurício tão perfeito, tão amoroso, meu querido Orfeu!”

“Abril, 1920”.
“Quero morrer! Outra carta, outro despejar de maledicências! Só que agora há provas... As fotografias de Maurício, dois filhos e uma mulher morena e tão jovem quanto eu, estão sob o alcance de meus olhos nesse momento. Chama-se Arlinda. Quero rasgar esta foto e não consigo... mas não posso acreditar em tamanha traição! Ah, como odeio a essas duas carinhas que têm os mesmos olhos de Maurício e me fitam risonhas através desse maldito retrato!’’

“(...) Há três dias que me recuso a falar com o canalha. Minha família está em polvorosa, sem nada entender e eu tampouco dou explicações. Que pensem que estou louca, mas nada direi, não quero expor os meus a tamanha vergonha. Que Deus me ajude.”

“Maio, 1920”.
“Faltam apenas dez dias para o casamento e ainda não sei o que vou fazer. Maurício noiva como o mais perfeito dos homens, cínico! Estou cada vez mais angustiada, deprimida. Quase não durmo ou me alimento. Sinto-me como um espectro ambulante, sem raízes ou futuro. Sei que tenho de fazer algo, mas fazer o que, se o amo com mais força e desejo? Acho que estou enlouquecendo!”

“(...) Finalmente a decisão. Mandei-lhe um bilhete hoje, pedindo que se encontre comigo na casa da praia.”

“(...) Tudo foi muito rápido. Não sei se foi um sonho ou se aconteceu... Faz algumas horas que cheguei da praia... a casa do encontro... Tomei um banho e estou agora deitada, escrevendo, procurando entender tudo que houve. Estou calma e até feliz novamente, solta, livre... Sei que não terei perdão perante os homens, mas Deus sabe que o que fiz era o que tinha de ser feito.

Cheguei na casa da praia muito antes de Mauricio. Havia comprado sorvete de passas com creme (ele sempre gostou de sorvetes) e fiquei esperando na sala, sorvete derretendo-se na embalagem. Ele chegou alegre, parecendo criança em dia festivo. Sentou-se e eu perguntei-lhe sobre Arlinda e as crianças. Ficou pálido, pensei que fosse desmaiar. Depois me contou tudo, numa voz arquejante e baixa. Não me olhava e eu tampouco o olhava. Meu olhar estava fixo numa machadinha que ficava presa na parede sobre o sofá, como ornamento. Bastava estender o braço e pegá-la, eu pensava o tempo todo... e foi o que fiz. Não sei como, mas logo que me vi com a machadinha de cabo preto na mão, golpeei a cabeça de Maurício com um prazer intenso, carregando de raiva e pavor! Emoção que me deu tamanha força para descarregar dois meses de angústias.

Golpeei Mauricio diversas vezes, não sei quantas, só parei quando vi sua cabeça parecendo uma pasta avermelhada, cheia de cabelos e miolos saltando libertos. Depois... eu acho... acho que comecei a devorar pedaços de carne que retirava do corpo de Maurício com a própria machadinha. Comia compulsivamente. Comia e vomitava e tornava a comer. Comi quase todo o corpo de Mauricio... e não me arrependo. Ele era meu e virou alimento para o meu corpo. Nada mais justo! E agora tenho que seguir meu destino. Não posso mais viver. ’’

O diário interrompe-se nesse trecho, o restaurante são folhas amareladas. Quase sem fôlego fechei-o num só impulso. Não consegui dormir pensando em Leocádia com a boca cheia de sangue, mastigando entre lágrimas a carne crua do seu amante.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

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