domingo, 6 de março de 2011

A FACA DE CORTA BIFES (contos)

        Banhado de sangue e areia, o corpo está inerte e frio pela morte. Lentamente, os primeiros raios do sol clareiam a praia deserta e o corpo de Ester. Um vento leve, suave, brinca com os longos cabelos loiros esparramados na areia. Ester... Quem foi Ester? Quem matou Ester?
         Ester foi uma menina branca, quase de neve, alegre, mulher livre, solta. Ester foi louca, consumindo-se no desejo de liberdade, mas reprimida num universo introvertido, só seu. Ester foi gente, amante sofrida, amada e abandonada. Ester sonhava em ser pássaro voando no céu azul e infinito.
         Ester o encontrou numa palestra de literatura inglesa. Palestra cansativa, longa. Olhou em volta entediada, disfarçando o bocejo. Encontrou uns olhos escuros, tristes, num rosto nem jovem nem bonito nem feio. Um sorriso, um gesto, trocaram telefones. Encontraram-se no outro dia. Conversa agradável, solta, inteligente. Ester enamorou-se, ou quis enamorar-se, quando fizeram amor sobre a cama barulhenta de colchão de mola antigo, num apartamento pequeno e sujo, onde ele morava. Era professor de inglês, tinha 40 anos e dizia não querer casar. Ester perdia-se nos olhos escuros do professor e sofria com o descaso deles. Ele era evasivo, frio, distante. Ester queria conhecer seus segredos e torturava-se num mar de ciúmes pavorosos. Mas Ester era pássaro leve, cansou-se.
      Um dia, noutra palestra, agora de literatura francesa, deixava-se seduzir pelo lirismo de Balzac e encontrou um sorriso alegre e travesso. O coração balançou e Ester reconheceu o velho sentimento de embriagues diante da paixão. Jantaram sanduíche de mortadela no bar da faculdade, andaram de mãos dadas e fizeram amor no beliche da pensão onde ele morava. E Ester envolveu-se com o estudante de filosofia, pobre e sedutor.
       O professor sentiu a mudança e enamorou-se tardiamente, Ester pássaro solto voou. Enlouquecido, corroendo-se de ciúmes, arquitetava conquista-la novamente ou vingar-se! Convidou-a para jantar. Ester romântica aceitou, queria matar as saudades. Com mania de mulher fatal, vestiu um longo preto, insinuante e chegou envolta num sorriso de lábios vermelhos. Jantaram comida portuguesa e tomaram vinho que borbulhou deixando Ester tonta e faminta de desejos pelo professor. Fizeram amor preguiçosamente e quando ele foi deixa-la em casa, Ester sugeriu um passeio pela praia, para sentir o cheiro do mar.
      No caminho, conversa vai e vem, o professor pergunta pelo novo namorado. Ester alegre e sem malícia, fala abertamente do adorável e jovem estudante, e de como era bom estar com ele. O professor escuta tudo roendo de dor. Na praia, madrugada fresca, ondas barulhentas batendo na areia branca, Ester criança brincalhona se solta na escuridão da noite, dançado ao som das ondas. O professor observa, e sem poder conter-se mais, violento e passionalmente penetra a faca de cortar bifes, nas costas de Ester. A mesma faca que tantos bifes cortou para Ester e que agora lhe corta as carnes marcias.
       Sol alto, dia claro. O mar lambe sensualmente o corpo largado de Ester, observado pela polícia, fotógrafos e curiosos. E Ester, amante da vida e dos amores, vira notícia de jornal.    
(conto publicado no livro "Psiu o Sindico pode Estar Ouvido" -1987, de Isa Magalhães)     

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