sábado, 5 de março de 2011

A RODA DO TEMPO (conto)

     

O tempo corre levando como numa enchente de rio, tudo a sua frente. Não perdoa nem mesmo as ilusões, os sonhos, os pensamentos. Ficam perpetuados apenas nas lembranças onde o tempo não tem tempo. Onde tudo parece tão real, tão recente que chega a assustar quando percebemos os anos que já se passaram.


Nas minhas lembranças, Dão - o jovem e sorridente moço de rosto bonito ainda corre comigo pelo parque, onde riamos dos passos trôpegos dos velhos que modorravam feito moscas ao fim do dia, quietos e lentos como se nada mais importasse no mundo. Incomodava-nos aquela calma letárgica e riamos para afastar o medo de um dia nos transformarmos naqueles seres estranhos - os velhos. Como se pudéssemos para o tempo! Doces ilusões de jovens cabeças ocas... Dão já morreu. E não morreu jovem. Seu rosto bonito foi aos poucos se transformando numa máscara de peles flácidas e enrugadas. Seu sorriso franco afundou-se numa boca mole de dentes falsos tal como um fruto chupado.
E eu estou mais velha ainda. Minhas mãos outrora leves e dançantes parecem que estão agora aprisionadas em luvas tecidas com fios de chumbo, ressecadas pela artrite. Em vão tento passar batom nos lábios que de tão murchos assemelham-se a um risco mal feito num rosto enrugado...
- Ainda não dormiu, tia Ayla? - A voz azeda da enfermeira do asilo de velhos me incomoda, como ousa a invadir minha privacidade? Penso quieta, sem vontade de responder, mas respondo tentando parecer simpática para ela me deixar em paz.
- Não, querida. Não posso. Tenho que ficar lembrando, lembrando. Rememorando o passado para saber que ainda estou viva. Para tentar afastar de mim a maldição da velhice...
- Ah, tia Ayla, todos ficamos velhos, é natural. É o ciclo da vida!
- Ao diabo com ciclo da vida! Que vida? Velho não tem vida. Esgueirasse pelo mundo esperando a morte. – Respondo quase gritando. Como explicar o peso da velhice para quem ainda é jovem?
- A senhora está muito amarga hoje. Uma boa noite de sono vai lhe deixar ótima! Vou apagar a luz agora e a senhora vai dormir como um anjinho!
- Não, por favor, não! Deixe a luz acesa. A escuridão é tão terrível, parece que estou sendo enterrada viva...
- E como à senhora vai dormir de luz acesa? – Insiste a enfermeira.
- Eu durmo, prometo.
- Não posso deixar de apagar a luz, é o regulamento: dez horas - luz apagada. Lembra-se?
- É que quando tudo fica escuro eles aparecem?
- Eles quem, tia Ayla?
- Ora, os meus antigos amantes. Só não vem o Dão...acho que porquê ele era marido... – A lembranças de Dão invadem minha mente. Pobre e querido Dão!
- Mas isso é ótimo! Só assim a senhora tem com que conversar quando está sem sono.
- Conversar?! Eles ficam é rindo de mim! Chamando-me de velha, perguntando pelos meus lindos cabelos castanhos, minha pele sem manchas e tão branca, que eu tanto me orgulhava... ah, eu os odeio!
- Calma, calma. Está tudo bem. Vamos fazer assim, apagamos a luz e eles não poder lhe enxergar, certo?
- Os fantasmas não precisam de luz para enxergar, menina! É ao contrário. A luz os afasta.
- Tudo bem tia Ayla, mas não posso deixar a luz acesa, se não o diretor vai brigar é comigo. Boa noite.
A enfermeira sai, arrastando seus irritantes tamancos pelos corredores, deixando o quarto na mais completa escuridão.

... Quando envelhecemos é como se voltássemos novamente à infância. Nossas manias, nossas necessidades, nossos pedidos, nada são respeitados. Tornamo-nos uma espécie de entulho atrapalhando e ocupando espaço desnecessariamente. Eu e Dão tivemos dois filhos. Dois meninos que crescerão sem que notássemos. Quando demos por nós, eles já estavam barbados, gritando e ridicularizando nossos gostos. Cedo tomaram rumo na vida, “aves de arribação” como dizia Tita, minha fiel empregada, espécie de segunda mãe para eles... Fui bonita, muito bonita! Dão não falava, mas os outros homens sim. Sempre gostei de me arrumar, me enfeitar com longos colares e brincos vistosos. Batom só se fosse bem vermelho, que era para realçar os lábios - uma festa para os olhos, como dizia Afonso, um de meus muitos amantes.

Amava Dão, mas Dão era marido e marido nunca diz que você é bonita, não fala palavras doces, não faz carinho ousado. Trata-nos como uma coisa de uso pessoal, de utilidade. Sabia que era muita amada por Dão, mas ele nunca dizia isso, demonstrava tentando me dar conforto e segurança. Mas isso não era o bastante para minha sede de prazer e vida!

Os outros, os amantes, me tratavam como verdadeiro troféu duramente conquistado. Tive muitos amantes e não me arrependo. Foi bom, me divertir e tive muito prazer. Afonso foi o que mais gostei. Quase deixei o Dão por ele. Tão gentil, adorável! Fazia amor como ninguém. Meio parvo, lento nas ideias para dizer a verdade, mas um grande amante! Totalmente esperto na cama e muito apaixonado por mim, isso era o que importava. Encontrávamo-nos todas as 5ª feiras, numa velha e antiga casa perdida no centro da cidade, que alugava cômodos.

Sujo, quente e sufocante, o quarto em que nos perdíamos um no outro, ficava no terceiro andar. Ainda me lembro da escada íngreme que parecia não ter fim, que gemia quando subíamos quase correndo, movidos pelo desejo que consumia nossas carnes! Era tão bom...

Nunca soube se Dão desconfiava ou sabia de minhas escapadas. Sempre foi atencioso nos quase cinquenta anos que passamos casados. Anos que passaram tão depressa que nos assustávamos a cada aniversário. Fazem mais de doze anos que Dão se foi... Era dia de futebol, ele era louco por futebol. Seu time jogava, acho que era decisão. Um gol da vitória estrangulou de emoção seu coração. Tempos depois, meu filho mais velho achou melhor vender a casa onde morei por quase toda a minha vida e me trouxe para esse asilo de velhos que ele chama de pensionato para idosos. Ah, sei! E cá estou eu, sem casa, sem marido, sem amantes. Amargurando o peso estúpido da velhice. Olhando minhas carnes flácidas, soltas, balançando-se sobre ossos frágeis, como gelatina derretendo.

Engraçado, quando jovem acreditamos que a velhice só vai acontecer aos outros. E como odeio a velhice! Odeio me sentir presa numa roupa velha e desgastada tal qual o meu corpo agora. Minha mente ainda é ágil, juvenil, como quando tinha vinte anos. Por que será que a mente não acompanha a flacidez do corpo?

Os fantasmas chegaram. Afonso é o único que me defende, apesar de ter morrido por minha causa. Era estivador no porto. Matou-se de tanto trabalhar no cais para ter dinheiro suficiente e comprar presentes caros para mim, pagar os lugares dos nossos encontros. Pegou tuberculose e morreu só. Chorei muito no dia que soube, mas era casada, mãe de família, não podia me expor... Depois dele, perdi um pouco o gosto pelos amantes. Só tive mais uns dois e virei avó... ah, malditos fantasmas, parem de ri!

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

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