sábado, 5 de março de 2011

O PLANTADOR DE OSSOS (conto)

- “O diabo nos envolve com criaturas formadas não por si mesmas, mas por Deus e com várias delícias consonantes a sua própria versatilidade; não como animais com comidas, mas com árvores, animais e encantamentos e cerimônias”.

Deliciava-me ficar atrás da porta escutando a voz melódica e suave de meu avô em suas infindáveis leituras diárias de santo Agostinho. Lia em voz alta, pra que as palavras ecoassem pela casa e voltasse em verdade para seus ouvidos.

A tarde escurecia. A pouca luz que entrava deixava meu avô, sentado perto da janela, pequeno, quase um menino feio e enrugado. Aproximei-me para fazer-lhe um afago. Fechou o livro bruscamente, olhou-me com frieza por trás das grosas lentes dos óculos de aros dourados, e disse-me entre os dentes:
- Não me toque, você agora é uma delas!
Baixei a mão que estava no ar, pronta para o caminho.
- Já conversamos diversas vezes sobre isso, vovô. Não tenho culpa, é a maldição da família – falei tentando parecer serena.
- Você poderia ter rompido com esse costume diabólico se quisesse. Você era diferente delas. Costumava correr pelos jardins e chorava quando via as cruzes. Ainda lembra-se das cruzes?
- É claro que sim. Lembro-me que nessa época também costumava lhe chamar de plantador de cruzes, ou de ossos, não sei bem.
- “Meu querido plantador de ossos”, era assim que me chamava. Por muito tempo alimentei a esperança de que finalmente a família se veria livre de tudo, e assim eu poderia morrer em paz. Você era essa esperança. Não se parecia em nada com elas – a voz perde a intensidade e o velho cala-se.
Encosto-me ao parapeito da janela sentindo um cheiro adocicado de frutas maduras. Olho para o jardim e digo:
- As árvores estão carregadas, vovô. O senhor não acha que as frutas que amadurecem naturalmente são mais gostosas? – Pergunto procurando desviar o assunto.
- Deixe-me, por favor. Você ainda cheira a sangue e isso me incomoda. Vá embora, deixe-me em paz, sua maldade me fere!
Saio do quarto tentando ficar calma. No mundo só havia uma pessoa capaz de me deixar abalada: meu avô.

Encontrei tia Úrlis e vovó na sala dos Mistérios. As duas tricotavam em silêncio, com fios de cabelos humanos, uma cinta. Sabia que não gostavam de interferências quando trabalhavam, porém, eu estava tão deprimida que precisava falar com alguém.
- Estive com o vovô. Ele está impossível!
- Ele a deixou-a nervosa novamente, não é querida? Você não deveria procurá-lo. – Respondeu tia Úrlis numa voz rouca e baixa como se há muito não falasse.
- Não seja dura, Úrlis. A menina precisa aprender a se defender, porém, ela e o avô se gostam! – Reagiu prontamente vovó. – É certo que seu pai nunca concordou com os costumes das mulheres de nossa família. Acha diabólico... Pobre homem, é católico demais para entender outras formas de adorações. Mas o que esperar de alguém que vivia num mosteiro, quando nos conhecemos? – Os olhos de vovó ficam perdidos nas lembranças de um passado a muito distante. – Sabe que ele nunca disse que me amava? Dizia apenas que queria salvar minha alma, e eu gostei dessas palavras ingênuas e sinceras... Mas dai nos casamos e esse foi nosso erro. – Vovó larga as agulhas e se aproxima tocando-me levemente nos ombros, com mãos tão frias que pareciam garras de gelo.

– Por gerações somos o que somos. – Ela continua a falar. – É mais forte do que nós, do que nossos desejos. É isso que seu avô não compreende.
- Gostaria apenas de saber por que vovô nunca nos deixou, se nos odeia tanto? – Pergunto quase chorando.
- Porque cada um carrega seu destino sem poder fugir dele, querida. Seu avô sabe disso. – Vovó dar um suspiro cansado voltando ao trabalho, deixando uma sensação de silêncio incompleto no ar.
- O destino dele é plantar ossos? – Perguntei tentando continuar o assunto.
- Não nos aborreça mais, menina! – cortou-me friamente tia Úrlis. – Volte para seu quarto e prepare-se. Amanhã a lua entra em minguante, portanto, só temos mais esta noite para as celebrações.

Olhei com rancor para a mulher alta e esguia, irmã mais velha de minha falecida mãe. Mesmo depois de ter-me iniciado no culto das mulheres, ela ainda não me respeitava. Continuava a tratar-me asperamente e isso eu jamais perdoaria. Saí da sala pisando forte antes que desabasse a chorar ali mesmo.

O espelho do penteador que pertenceu a minha mãe olha-me, devolvendo imagens de mim mesma onde a perplexidade do meu rosto parecia responder as indagações sobre o meu destino... meu infalível destino que não me conduzia a nada nesta vida. Pelo menos, era essa a sensação que corria lentamente por todo o meu ser. Visto a túnica alaranjada de tecido tão leve que deixa a minha pele arrepiada. Essa sensação faz a minha consciência crítica evaporar-se, deixando lugar apenas para os deveres de uma iniciada.

Havia pelo menos dez mulheres quando chegamos às pedras sagradas. Eram pedras negras e pontudas, que se abriam para um abismo profundo rumo a um rio revolto lá embaixo. Cânticos roucos de louvores se fazia ouvir a distância. Há cinco estações que eu frequentava um sabá, porém, a excitação continuava como no primeiro. O unguento de ervas que esfregávamos em nossos corpos, enquanto dançavam em círculos, dava uma sensação de dormência que parecia nos deixar flutuando. E depois então, que bebíamos as porções preparadas por tia Úrlis, parecia que voamos de tão leve que ficávamos!

Este ritual era o mais importante e o mais difícil. Mas não tinha como fugirmos dele. A Mãe Terra necessita do sangue de seus filhos para sobreviver! Quando as mulheres me conduziram ao um pequeno altar no meio das pedras e colocaram a criança nos meus braços, senti o coração parar... a criança não devia ter mais de um ano... Ela estava adormecida pelas ervas que havia bebido. Mesmo com o coração pesaroso, não fugi ao meu dever. Sentia a presença de seres da natureza metamorfoseados em animais diversos, que espiavam a dança sagrada esperando pacientemente a comunhão.
Deitei a criança no altar, despi os panos que cobriam seu pequeno corpo orando a grande Mãe Terra, oferece-lhe o sangue puro e a alma imortal daquele pequeno ser, e erguei o punhal...

Acordei tarde, como geralmente fazia depois de um ritual, e encontrei vovô no jardim com algumas flores na mão.
- Que coisa boa lhe ver aqui fora. – Saudei-o alegre.
- Estou colhendo flores para o túmulo do bebê que vocês assassinaram ontem. É o mínimo que posso fazer.
- Por que se martirizar com isso, meu avô? O senhor já devia ter-se acostumado, após todos esses anos. – Respondo irritada.
- Os mártires, os místicos, são feitos de outras matérias, assim como os sombrios opressores da vida. – Ele respondeu sem me olhar, afastando-se com seus passos trôpegos para o fundo do jardim, onde centenas de pequenas cruzes de madeiras despontavam como num campo semeado.

Este era o cerimonial sagrado de meu avô. Ritual após ritual de fertilização da terra, há mais de cinquenta anos, que ele recolhia os ossos e restos mortais das crianças usadas na comunhão e os enterravam cuidadosamente, como se plantasse sementes valiosas.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

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