domingo, 6 de março de 2011

PEQUENOS GESTOS DO COTIDIANO BURGUÊS (conto)

  (Conto do livro "As Várias Maneiras de Amar" - Isa Magalhães)
       A mesa estava posta. Talheres de prata, pratos brancos, guardanapos brancos, tudo como Alberto gosta.
     - O jantar está na mesa, querido! – A voz soa em falseta, talvez pelo medo de interromper o marido no escritório. Olha em volta, a casa antiga, os móveis herdados de tantos avós que não sabia o que pertencerá a quem, a tradição. Respira fundo ajeitando a gola de renda do vestido cinza, meio abafada pelo colar de perolas e talvez pelas lagrimas engolidas. Quarenta e cinco anos de casada, três filhos, cinco netos... Lembra de Albertinho, o filho mais velho. O peito ainda doí quando a cena da confissão, como o filho chamou, vem a sua mente como um filme em branco e preto. Era o jantar das quintas-feiras, quando reunia toda a família.
    - Queridos pais, querida família, tenho uma confissão muito importante a fazê-los... Eu sou gay! – Albertinho abre um grande sorriso como para amenizar suas palavras.
     - É mesmo filho, e desde quando? – Pelo tom da voz de Alberto – o pai, via-se que não tinha acreditado na confissão do filho.
   - Pai, eu sou GAY! E estou casado com André desde maio. – André, o amigo de todas as horas estava branco, e parecia que ia afundar mesa abaixo diante do olhar de todos.          
   - Pouca vergonha! Safadeza! Não admito isso na minha família! Retire-se da minha casa imediatamente seu... sua aberração! – Os gritos de Alberto ecoaram como urros de  animal ferido. Dor, decepção, vergonha. Todos os sentimentos podiam ser vistos no rosto do velho homem.
Ela, parada, perdida, apertando a gola do vestido chorando num silêncio de mãe. Olhava para o filho procurando entender o que ele dizia. “Como casado? Eram dois homens! Isso vai contra as leis de Deus!”.   
 Depois desse dia Albertinho nunca mais telefonou, nunca mais se ouviu seu riso alegre que aquecia a casa ancestral. Sabia que estava bem pela faxineira que compartilhavam. “Ah, o Dr. Albertinho tá muito bem mais o Dr. André. São tão amigos....”. E contava num tom meio petulante, de intimidade, como eles adoravam receber os amigos, que quase todo dia tinha um jantar onde só iam homens e era um trabalhão arrumar tudo no outro dia.
    - Perdidas em pensamentos, querida? – A voz do marido lhe assusta um pouco. Ele agora deu para dizer que só tinha dois filhos e que o mais velho tinha morrido. Seu coração se aperta ao olhar os olhos azuis do marido. Tão amado! Nem parece que já estão juntos há tantos anos. Se não fosse o gênio tirânico do marido, poderia dizer que sua vida era perfeita.
    - Oh, querido, nem notei você entrando... Não, estava só lembrando que temos convidados para o jantar na sexta-feira.
    - E esses olhos lacrimejantes? Você não me engana, querida. Pensado naquele... Você sabe em quem! – Ele não ousa nem a pronunciar a palavra filho, ou dizer o nome, que era o mesmo que o seu.
     Ele amava a mulher mais que qualquer coisa. Conheceram-se num final de semana na casa de amigos e nunca mais se separaram. Havia jurado, aos pés do padre, ama-la e respeita-la e tinha feito isso por quase cinco décadas, mas perdoar o filho jamais! Além do mais, o culpava pela doença dela.
    Logo após a confissão, Ana Amélia adoecera. Primeiro uma dor no braço, que evoluiu para uma dor nas costas, e finalmente descobriram o maldito câncer no pulmão esquerdo. Foi à tristeza, tinha certeza disso. Sabia que ela morreria em breve, mas não agüentava pensar nisso. Não agüentava pensar na vida sem o sorriso meigo, a paz que a presença de Ana Amélia lhe transmitia.
     Sabia que depois do jantar passeariam pelo jardim bem cuidado, tomariam vinho sentados no banco de madeira perto da capelinha de Santa Edwiges entre roseiras brancas, e relembrariam o passado. As viagens, as festas, as histórias engraçadas dos netos. Nesses momentos, a vida passava como gotas homeopáticas, suave, quase como um suspiro. E ele queria assim, para perpetuar o sabor do encontro, eternizando a vida nos pequenos gestos do cotidiano. Ao deitarem, dormiriam de mãos dadas, um velando o sono do outro, como bons cristãos... Mas perdoar o filho? Nunca!

(do livro “As Varias Maneiras de Amar” – contos - 1999, Fortaleza/Ce)

A FACA DE CORTA BIFES (contos)

        Banhado de sangue e areia, o corpo está inerte e frio pela morte. Lentamente, os primeiros raios do sol clareiam a praia deserta e o corpo de Ester. Um vento leve, suave, brinca com os longos cabelos loiros esparramados na areia. Ester... Quem foi Ester? Quem matou Ester?
         Ester foi uma menina branca, quase de neve, alegre, mulher livre, solta. Ester foi louca, consumindo-se no desejo de liberdade, mas reprimida num universo introvertido, só seu. Ester foi gente, amante sofrida, amada e abandonada. Ester sonhava em ser pássaro voando no céu azul e infinito.
         Ester o encontrou numa palestra de literatura inglesa. Palestra cansativa, longa. Olhou em volta entediada, disfarçando o bocejo. Encontrou uns olhos escuros, tristes, num rosto nem jovem nem bonito nem feio. Um sorriso, um gesto, trocaram telefones. Encontraram-se no outro dia. Conversa agradável, solta, inteligente. Ester enamorou-se, ou quis enamorar-se, quando fizeram amor sobre a cama barulhenta de colchão de mola antigo, num apartamento pequeno e sujo, onde ele morava. Era professor de inglês, tinha 40 anos e dizia não querer casar. Ester perdia-se nos olhos escuros do professor e sofria com o descaso deles. Ele era evasivo, frio, distante. Ester queria conhecer seus segredos e torturava-se num mar de ciúmes pavorosos. Mas Ester era pássaro leve, cansou-se.
      Um dia, noutra palestra, agora de literatura francesa, deixava-se seduzir pelo lirismo de Balzac e encontrou um sorriso alegre e travesso. O coração balançou e Ester reconheceu o velho sentimento de embriagues diante da paixão. Jantaram sanduíche de mortadela no bar da faculdade, andaram de mãos dadas e fizeram amor no beliche da pensão onde ele morava. E Ester envolveu-se com o estudante de filosofia, pobre e sedutor.
       O professor sentiu a mudança e enamorou-se tardiamente, Ester pássaro solto voou. Enlouquecido, corroendo-se de ciúmes, arquitetava conquista-la novamente ou vingar-se! Convidou-a para jantar. Ester romântica aceitou, queria matar as saudades. Com mania de mulher fatal, vestiu um longo preto, insinuante e chegou envolta num sorriso de lábios vermelhos. Jantaram comida portuguesa e tomaram vinho que borbulhou deixando Ester tonta e faminta de desejos pelo professor. Fizeram amor preguiçosamente e quando ele foi deixa-la em casa, Ester sugeriu um passeio pela praia, para sentir o cheiro do mar.
      No caminho, conversa vai e vem, o professor pergunta pelo novo namorado. Ester alegre e sem malícia, fala abertamente do adorável e jovem estudante, e de como era bom estar com ele. O professor escuta tudo roendo de dor. Na praia, madrugada fresca, ondas barulhentas batendo na areia branca, Ester criança brincalhona se solta na escuridão da noite, dançado ao som das ondas. O professor observa, e sem poder conter-se mais, violento e passionalmente penetra a faca de cortar bifes, nas costas de Ester. A mesma faca que tantos bifes cortou para Ester e que agora lhe corta as carnes marcias.
       Sol alto, dia claro. O mar lambe sensualmente o corpo largado de Ester, observado pela polícia, fotógrafos e curiosos. E Ester, amante da vida e dos amores, vira notícia de jornal.    
(conto publicado no livro "Psiu o Sindico pode Estar Ouvido" -1987, de Isa Magalhães)     

O SUAVE CHEIRO DAS MANGAS MADURAS (conto)


     
     A quieta noite de outubro é invadida pelos murmúrios da sala ao lado, onde Antônio está sendo velado. O cheiro adocicado das velas queimando me enjoa, assim como as rezas e as conversa dos poucos amigos que ainda estão no velório, teimando em relembrarem os bons momentos com o morto. Fico em dúvida se choro agora ou mais tarde, protegida no meu quarto.
    Toco suavemente a caderneta encapada de couro marrom guardada no bolso do casaco, sinto sua consistência macia e isso me acalma. Lá fora uma noite de céu estrelado me espia pela janela aberta da sala, dando-me a sensação de inutilidade e pequenez. Olho os retratos na mesinha ao lado da poltrona onde me encontro afundada na minha dor, e numa das fotos Antônio me sorrir alegre e jovial fazendo-me voltar para outros tempos. Nervosa, aposso-me da foto e a guardo na bolsa. Lembro novamente da caderneta. Tiro-a do bolso e a folheio discretamente, páginas amareladas pelo tempo, letras contundentes escritas com presa ou emoção... a letra de Antônio.
     Levanto a cabeça e digo para mim mesma: “o retrato e a caderneta... as minhas heranças!”. Guardo tudo apressadamente, vozes chorosas se aproximam da sala onde me encontro. Helena, a viúva gorda e sufocada num vestido cinza entra amparada pela única filha, me cumprimenta com um sorriso que lembra uma careta e senta-se ao meu lado. Quero sair correndo, voltar para o lado do caixão de Antônio. Mas não consigo me mover.
     - Perdemos Antônio, não é Laura? Perdemos Antônio... – Ela diz enquanto assua alto o nariz. Aperto-lhe a mão e saio rapidamente sem lhe dar resposta.
      Não fui ao enterro. Preferi ficar em casa olhando o retrato de Antônio e lendo a pequena caderneta de couro marrom que me foi entregue pelo melhor amigo dele - seu Jerônimo, o quitandeiro da esquina, que a mais de vinte anos vende as mangas do meu quintal. Conheci Antônio na quitanda dele.
    - Então é do seu quintal que vem o cheiro dessas maravilhas? - Perguntou-me ele num mês de janeiro de muitos anos atrás. Era então um jovem professor de longos cabelos ondulados e poeta nas horas vagas. Fiquei encabulada e sorri timidamente enquanto entregava a seu Jerônimo o cesto repleto de mangas. Ele pegou uma das frutas, a mais redonda e rosada, cheirou-a e disse sorridente:
    - O cheiro doce de uma manga madura desperta sonhos e misteriosos... É como tocar nos seios macios de uma mulher... - Vendo meu embaraço, ele se desculpou. – É que enlouqueço quando tenho uma dessas gostosuras nas mãos. Obrigado, muito obrigado por cultivar mangas!
     Ri do seu jeito alegre e franco e nos tornamos amigos. Era recém-casado e sua mulher esperava o primeiro filho. 
       Passou a me visitar quase todos os fins de tarde, após o trabalho. Conversamos sobre tudo enquanto tomávamos refresco de manga. Acostumei-me com sua presença cheia de poesia e anseios. Sentia falta quando por um motivo ou outro não aparecia. Não lembro quando comecei a me apaixonar por ele. No princípio escondia os sentimentos até de mim mesma. Depois, quando finalmente admiti está apaixonada, vivi momentos de verdadeiro inferno com medo de ele perceber meus sentimentos. Respeitava nossa amizade e não queria constranger Antônio. Passamos anos e anos nos vendo quase todos os dias, conversando sobre poesia, livros, sonhos, seus medos e projetos, tudo como dois bons e fieis amigos.  
  Andando pela sala onde costumávamos ficar, penso como será a vida sem Antônio. Sei que terei de continuar apesar da falta, mas será muito difícil! Ele era um ponto de referência na minha vida. Sem ele é vazio, falta, solidão. Leio mais uma vez a caderneta que ele me deixou. Um riso nervoso se apodera de mim. Ouço o som da minha risada e quero ficar assim pelo resto da vida. Que vida? Minha vida era os fins de tardes com Antônio, quando cada poro do meu corpo ficava alerta, esperando o contato delicado e furtivo das suas mãos encontrando as minhas casualmente. Ou seu beijo leve no meu rosto, quando se despedia.
 Meu coração batia apressado quando sentia o cheiro da sua colônia misturada ao hálito cheirando a mangas. Sei que o amei com o coração de uma mulher solitária e madura... Tão madura como as mangas do meu quintal, prontas para serem colhidas e devoradas.
 Escuto meio distanciada uma voz rouca, a minha voz, lendo selvagemente aos berros, para que as paredes brancas, os móveis e os objetos daquela sala - únicos testemunhos dos meus delírios, escutassem pela primeira vez as confissões de um homem que assim como eu, passou a vida se escondendo.
  “Não tenho esperanças. Ela jamais me olhará como homem. É leal demais a nossa amizade para me deixar entrar na sua vida de outra maneira. Ah, meu Deus, e como eu a desejo! Como desejo tocar seu corpo, beijar seus seios rosados como as mangas que me presenteia...”

(do livro “As Várias Maneiras de Amar” – contos - 1999, Fortaleza/Ce)

sábado, 5 de março de 2011

A RODA DO TEMPO (conto)

     

O tempo corre levando como numa enchente de rio, tudo a sua frente. Não perdoa nem mesmo as ilusões, os sonhos, os pensamentos. Ficam perpetuados apenas nas lembranças onde o tempo não tem tempo. Onde tudo parece tão real, tão recente que chega a assustar quando percebemos os anos que já se passaram.


Nas minhas lembranças, Dão - o jovem e sorridente moço de rosto bonito ainda corre comigo pelo parque, onde riamos dos passos trôpegos dos velhos que modorravam feito moscas ao fim do dia, quietos e lentos como se nada mais importasse no mundo. Incomodava-nos aquela calma letárgica e riamos para afastar o medo de um dia nos transformarmos naqueles seres estranhos - os velhos. Como se pudéssemos para o tempo! Doces ilusões de jovens cabeças ocas... Dão já morreu. E não morreu jovem. Seu rosto bonito foi aos poucos se transformando numa máscara de peles flácidas e enrugadas. Seu sorriso franco afundou-se numa boca mole de dentes falsos tal como um fruto chupado.
E eu estou mais velha ainda. Minhas mãos outrora leves e dançantes parecem que estão agora aprisionadas em luvas tecidas com fios de chumbo, ressecadas pela artrite. Em vão tento passar batom nos lábios que de tão murchos assemelham-se a um risco mal feito num rosto enrugado...
- Ainda não dormiu, tia Ayla? - A voz azeda da enfermeira do asilo de velhos me incomoda, como ousa a invadir minha privacidade? Penso quieta, sem vontade de responder, mas respondo tentando parecer simpática para ela me deixar em paz.
- Não, querida. Não posso. Tenho que ficar lembrando, lembrando. Rememorando o passado para saber que ainda estou viva. Para tentar afastar de mim a maldição da velhice...
- Ah, tia Ayla, todos ficamos velhos, é natural. É o ciclo da vida!
- Ao diabo com ciclo da vida! Que vida? Velho não tem vida. Esgueirasse pelo mundo esperando a morte. – Respondo quase gritando. Como explicar o peso da velhice para quem ainda é jovem?
- A senhora está muito amarga hoje. Uma boa noite de sono vai lhe deixar ótima! Vou apagar a luz agora e a senhora vai dormir como um anjinho!
- Não, por favor, não! Deixe a luz acesa. A escuridão é tão terrível, parece que estou sendo enterrada viva...
- E como à senhora vai dormir de luz acesa? – Insiste a enfermeira.
- Eu durmo, prometo.
- Não posso deixar de apagar a luz, é o regulamento: dez horas - luz apagada. Lembra-se?
- É que quando tudo fica escuro eles aparecem?
- Eles quem, tia Ayla?
- Ora, os meus antigos amantes. Só não vem o Dão...acho que porquê ele era marido... – A lembranças de Dão invadem minha mente. Pobre e querido Dão!
- Mas isso é ótimo! Só assim a senhora tem com que conversar quando está sem sono.
- Conversar?! Eles ficam é rindo de mim! Chamando-me de velha, perguntando pelos meus lindos cabelos castanhos, minha pele sem manchas e tão branca, que eu tanto me orgulhava... ah, eu os odeio!
- Calma, calma. Está tudo bem. Vamos fazer assim, apagamos a luz e eles não poder lhe enxergar, certo?
- Os fantasmas não precisam de luz para enxergar, menina! É ao contrário. A luz os afasta.
- Tudo bem tia Ayla, mas não posso deixar a luz acesa, se não o diretor vai brigar é comigo. Boa noite.
A enfermeira sai, arrastando seus irritantes tamancos pelos corredores, deixando o quarto na mais completa escuridão.

... Quando envelhecemos é como se voltássemos novamente à infância. Nossas manias, nossas necessidades, nossos pedidos, nada são respeitados. Tornamo-nos uma espécie de entulho atrapalhando e ocupando espaço desnecessariamente. Eu e Dão tivemos dois filhos. Dois meninos que crescerão sem que notássemos. Quando demos por nós, eles já estavam barbados, gritando e ridicularizando nossos gostos. Cedo tomaram rumo na vida, “aves de arribação” como dizia Tita, minha fiel empregada, espécie de segunda mãe para eles... Fui bonita, muito bonita! Dão não falava, mas os outros homens sim. Sempre gostei de me arrumar, me enfeitar com longos colares e brincos vistosos. Batom só se fosse bem vermelho, que era para realçar os lábios - uma festa para os olhos, como dizia Afonso, um de meus muitos amantes.

Amava Dão, mas Dão era marido e marido nunca diz que você é bonita, não fala palavras doces, não faz carinho ousado. Trata-nos como uma coisa de uso pessoal, de utilidade. Sabia que era muita amada por Dão, mas ele nunca dizia isso, demonstrava tentando me dar conforto e segurança. Mas isso não era o bastante para minha sede de prazer e vida!

Os outros, os amantes, me tratavam como verdadeiro troféu duramente conquistado. Tive muitos amantes e não me arrependo. Foi bom, me divertir e tive muito prazer. Afonso foi o que mais gostei. Quase deixei o Dão por ele. Tão gentil, adorável! Fazia amor como ninguém. Meio parvo, lento nas ideias para dizer a verdade, mas um grande amante! Totalmente esperto na cama e muito apaixonado por mim, isso era o que importava. Encontrávamo-nos todas as 5ª feiras, numa velha e antiga casa perdida no centro da cidade, que alugava cômodos.

Sujo, quente e sufocante, o quarto em que nos perdíamos um no outro, ficava no terceiro andar. Ainda me lembro da escada íngreme que parecia não ter fim, que gemia quando subíamos quase correndo, movidos pelo desejo que consumia nossas carnes! Era tão bom...

Nunca soube se Dão desconfiava ou sabia de minhas escapadas. Sempre foi atencioso nos quase cinquenta anos que passamos casados. Anos que passaram tão depressa que nos assustávamos a cada aniversário. Fazem mais de doze anos que Dão se foi... Era dia de futebol, ele era louco por futebol. Seu time jogava, acho que era decisão. Um gol da vitória estrangulou de emoção seu coração. Tempos depois, meu filho mais velho achou melhor vender a casa onde morei por quase toda a minha vida e me trouxe para esse asilo de velhos que ele chama de pensionato para idosos. Ah, sei! E cá estou eu, sem casa, sem marido, sem amantes. Amargurando o peso estúpido da velhice. Olhando minhas carnes flácidas, soltas, balançando-se sobre ossos frágeis, como gelatina derretendo.

Engraçado, quando jovem acreditamos que a velhice só vai acontecer aos outros. E como odeio a velhice! Odeio me sentir presa numa roupa velha e desgastada tal qual o meu corpo agora. Minha mente ainda é ágil, juvenil, como quando tinha vinte anos. Por que será que a mente não acompanha a flacidez do corpo?

Os fantasmas chegaram. Afonso é o único que me defende, apesar de ter morrido por minha causa. Era estivador no porto. Matou-se de tanto trabalhar no cais para ter dinheiro suficiente e comprar presentes caros para mim, pagar os lugares dos nossos encontros. Pegou tuberculose e morreu só. Chorei muito no dia que soube, mas era casada, mãe de família, não podia me expor... Depois dele, perdi um pouco o gosto pelos amantes. Só tive mais uns dois e virei avó... ah, malditos fantasmas, parem de ri!

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

SOLIDÃO (conto)

         A noite está escura, gelada e dói no meu peito. É uma dor suave que escorrega pelo meu corpo vinda de minha alma, como uma carícia de mãos frias. Hoje eu o vi com ela. Deve ser uns quinze anos mais jovem do que eu... No entanto, o que mais doeu foi me reconhecer naquele sorriso fácil de mulher jovem. Eu era como ela, ardente, sensual, viva. Onde será que sepultei minha juventude? Nesse casamento de quase vinte anos?
    Hoje eu o vi com ela e pensei nas quantas bocas deixei de beijar, nos quantos corpos que deixei de tocar ou nas milhares de fantasias que deixei de realizar com os muitos  homens que desejei. Estranho o que se faz por medo de perder. Eu o amava e não queria acabar com o meu casamento! Quanta ironia. Deixei que meu corpo ficasse flácido e meu brilho apagasse para não ceder às tantas tentações que o mundo me oferecia. Eu vi seus olhos de desejos, os mesmos olhos que me lambiam antes da sua língua... Que agora lambe a moça jovem. Como dói! Dói e eu tento suavizar intelectualizando: Ah, mas é comigo que ele dorme todas as noites... Dorme sonhando com os seios brancos e sedosos da moça jovem! Quantas noites deve ter me acariciado pensando na moça e no seu corpo que deve ter cheiro de juventude. E nas vezes que descarregou seu sêmen nas minhas entranhas desejando estar dentro da moça... Eu o odeio! E odeio mais a mim mesma por ter me privado da vida.
     Horas correndo soltas, rápidas como o vento que entra pela janela aberta e gela meu corpo. Angustia que aperta o peito e não sei o que fazer com ela. Qual rumo darei a minha vida? ... Eles pareciam tão felizes... Lembrou-me de nós, anos atrás. Ele me acariciava e dizia que eu era bonita, que me amava. Será que me procura novamente numa mulher mais jovem? A gente muda tanto quando envelhece. Antes eu era alegre, risonha. Quanto tempo que não rio?
     - Ainda acordada, meu bem? O que você faz sentada no escuro? - Tão absorvida nos meus pensamentos que nem o vi entrar. A voz dele me assusta. Joga as chaves do carro dentro do cinzeiro e fico escutando o eco do som das chaves encontrando o vidro transparente de cristal caro, presente de algum aniversário de casamento com certeza. Com o que será que ele presenteia a moça? Perfumes, jóias, sedas? Os homens são tão sem imaginação...
      - O que pensa essa cabecinha linda? - Pergunta ele enquanto acaricia meus cabelos e me beija na testa. Eu queria era um beijo de língua, sufocante e ardente como os que ele troca com a moça! Ele senta ao meu lado e ainda posso sentir o cheiro de perfume doce, o perfume dela, empreguinado no seu corpo.
      - Nada. Não penso em nada... Não vivo nada, não sou nada... - Ele me olha surpreso. Recolhe o abraço e se afasta.
      - O que houve? Está com raiva de mim? - Pergunta irritado. E o que respondo agora? Que eu o vi com ela num barzinho da beira mar? E o que aconteceria depois? Estou preparada para largar esse homem, buscar a vida e o prazer no mundo lá fora?
     - Não, querido. É só um pouco de dor de cabeça. Passa logo. Quer que eu esquente o jantar? - Forço um sorriso e me levanto para não sentir o cheiro da moça no corpo dele.
    - Deixei carne assada no forno, você quer que eu esquente? – Pergunto. Tudo é tão banal, nossa conversa, nossa proximidade...
     - Não, já jantei... com uns amigos. – Ele levanta-se e sai em direção ao quarto desabotoando a camisa e cantarolando música de FM. Deve ser música de motel, penso enquanto o vejo sumir no corredor escuro. O que fazer? Não sei mais viver sem esse casamento, parece emprego antigo, tenho medo de mudar e ser pior, perder a estabilidade, a segurança. Que segurança? Ele pode me largar a qualquer momento para ir viver seu prazer. E o que digo agora? Que o vi com outra mulher? Será que vai adiantar? Ele vai negar e eu vou acreditar porque preciso acreditar.
       - Amor, vem cá! - Escuto sua voz gritando do banheiro e tenho vontade de lhe mandar pra merda.
        - Sim, querido? - Chego até a porta do quarto. As roupas estão jogadas no chão. Calça, camisa, cueca se amontoam. Será que ele faz assim no motel? Deixa as roupas jogadas depois de retira-las apressado e ofegante? Imaginar as cenas dele rolando entre desejos e sussurros com a moça, machuca ainda mais meu peito.
        - Me dê uma toalha nova, sabe que odeio toalhas molhadas! - Entrego-lhe uma toalha branca. As toalhas de motel também são brancas, penso perversamente.
        - Acho que vou viajar no final de semana. Á serviço. O diretor do banco me pediu para fiscalizar umas obras no interior. É uma viagem chata. Tá quente por lá... - E ele fica falando como que se desculpando por não me convidar. Sei que viajará com ela para alguma pousada numa praia deserta, onde tostarão ao sol e farão sexo lambuzados de areia.
         - São coisas da profissão, querido. Quer que eu arrume sua mala? – Respondo.     
         - Não, pode deixar que eu mesmo arrumo. Obrigado.
         Na certa não quer que eu veja as roupas leves que vai colocar na mala de viagem. Deita na cama ainda enrolado na toalha e pouco depois começa a roncar. Retiro a toalha de cima do seu corpo e penso que vejo marcas de unhas na sua barriga e coxas. Viro o rosto enquanto as lagrimas finalmente descem por meu rosto cansado. Deito-me ao seu lado sentindo seu hálito que cheira a bebida, enojada e resignada. Será mais um final de semana sozinha, brigando com os filhos adolescentes e limpando armários e gavetas.

(do livro “As Várias Maneiras de Amar” – contos - 1999, Fortaleza/Ce)

GEORGETTE (conto)

     Você ainda está tão presente que me custa acreditar no que aconteceu. Busco a todos instantes pequenos pedaços de tuas lembranças na planta quase morta do banheiro, que você adorava colocar na varanda para tomar sol... no vidro vazio de desodorante, na bolsa de palha jogada no quarto de despejo. São momentos que deito-me nas horas, tentando impedi-las de passar por medo de perder de vez tua memória no tempo que tudo dilui.

          ALGUNS ANOS ANTES

         Miúda, com um vestido negro a acentuar-lhe a magreza, Georgette esgueira-se pelos corredores escuros da velha casa de fazenda. De suas origens pouco se sabe. Talvez filha do velho coronel com alguma empregada, ou mesmo filha de Lauriana, a única filha dele, morta misteriosamente em Paris. Georgette apareceu por esse meio tempo e foi criada como filha. Ou quase.
        Assustada como as assombras, a menina miúda esconde-se de todos. O velho havia morrido há algumas horas. Na casa, primos, amigos, a única irmã ainda viva, todos silenciosos num respeito de medo. O corpo jazia no quarto, sobre a antiga cama de verniz escuro, com um semblante aborrecido na imobilidade da morte. Georgette sabe o quanto ele detestava casa cheia, mesmo que silenciosa. Costuma dizer que era o calor dos corpos das pessoas que lhe incomodava, e não suas vozes.
       Como o velho, ela também aprendera a não gosta de gente na casa. Sentia-se invadida nas entranhas e rezava com todas as forças para que os intrusos fossem embora. Menos ele - o sobrinho neto do velho, o mais bonito, que lhe sorriu por trás da imensa coroa fúnebre, fazendo seu coração de menina miúda bater forte. Depois do enterro, noite calma, sentados no alpendre da casa, ele pegou-lhe a mão e disse-lhe que a levaria dali no outro dia.
       Oficialmente, eles nunca se casaram. Ela passou a morar no apartamento dele, como parte de um acordo do testamento do velho. Herdaria tudo se cuidasse de Georgette. Ela fazia parte do apartamento como a coleção de biscuí chinesa tão bem guardada na cristaleira da sala. Havia muitas outras coleções como a discos antigos de cera, mas aquela era a que mais lhe chamava atenção, talvez pela fragilidade. Identificava-se com aqueles delicados bibelôs. Gostava de olha-los, mas de longe, com medo de quebra-los. Será que era assim, que ele a via. Pensava Georgette, quando se lembrava dos carinhos rápidos e desajeitados, do rapaz.
      Os dias eram vazios, passados entre os dois quartos e sala com vista para um viaduto e uma bela praça. Às vezes, distraía-se contando as pessoas que passavam apressadas, lá embaixo do prédio. Ou cozinhando complicados pratos retirados de um livro de receitas orientais, para o almoço. Em vão esperava-o, quase nunca almoçava em casa. Ela também quase nunca saia. Eram solitárias noites onde tricotava delicados pulôveres brancos, feitos e refeitos entre suspiros e lágrimas quentes. Ansiava pelo amor do homem que havia lhe tirado da quietude da casa do velho, sem entender qual era o seu papel na vida dele. Sentia-se esposa, mas nunca estava com ele, nunca conversavam.
       Pediu-lhe um filho numa madrugada de sexo rápido e frio. Não gostava de crianças, foi à resposta dele. Eram chantagistas e buliçosas, na certa quebrariam suas preciosas antigüidades. Também se sentia uma antiguidade perdida entre poeiras e lembranças. Nunca mais lhe pediu um filho. Trancou-se mais e mais no seu insólito mundo, até a monotonia parece-lhe segura e boa. Nada acontecia de novo, de bom ou ruim. Saberia dizer com precisão absoluta o que faria na tarde do dia seguinte. Era como um molusco encrostado, fechada e protegida no apartamento do decimo quinto andar. Aos finais de tarde bebia vodka, ouvido música clássica e olhando o resto do sol que morria, recostada na poltrona de coro escuro. Na certa ele diria-lhe que vinho era mais apropriado para ela. Mas vinho custava a inebriar-lhe, por isso preferia a vodka clara, transparente como água, que lhe lavava a lama das frustrações. Água magica, água do esquecimento e da euforia.
        Quase dez anos que estavam juntos. Tudo continuava como no primeiro dia. Até a indiferença dele era igual. Apenas o rosto de Georgette estava mudado. Mais cheio, maduro, quase bonito. Ele nunca lhe disse que a amava, mas também nunca disse que não. Ela achava que fazia parte da vida dele com a mesma importância das suas preciosas coleções.
       Uma noite, como não fazia há muito, ele chegou cedo, a tempo de jantarem juntos. Havia um silêncio pesado entre eles. E finalmente quando ele falou, as palavras fluíam tentando parecerem naturais. Georgette escutava, respiração ofegante, rosto lívido. As frases que ele dizia pareciam tão sem nexo, que ela só compreendia muito depois que ele havia falado. E quanto mais ele falava, mais parecia que tudo ruía ao seu redor. Seu mundo de monotonias e relíquias desabava sem que ela pudesse fazer nada.
        Ele iria se casar com uma ex-aluna. Moça nova, de boa família, chamava-se Letícia e casariam-se no mês de setembro, primavera, flores... ele falava, falava e ela fingia não ser com ela. Ficou rígida quando ele abraçou-lhe os ombros e disse-lhe para não preocupar-se, que ele não lhe deixaria na rua, que continuaria cuidando dela como sempre. Georgette finalmente compreendeu que nunca foi importante para ele.
     Com a voz chorosa, disse-lhe que ele não poderia casar com ninguém porque já era casado. Ele riu alto. Georgette tentava explicar entre lagrimas que não poderia viver ali sem a presença dele e das coleções, sem suas tardes de vodka. Nervoso, afagou os cabelos dela e disse-lhe que viria visita-la sempre e que arranjaria uma senhora para morar com ela. Entrou no banheiro tomou banho e disse que iria encontrar-se com a noiva. A porta bateu num eco surdo, deixando-a com o estômago contraído. Como em transe, Georgette foi até a cristaleira e, um a um, destruiu, quebrando como pedaços de sua vida, os preciosos biscuís chineses. Depois as xícaras antigas, os discos de cera e, finalmente, seu próprio corpo, lançado no vazio do decimo quinto andar.

... DE VOLTA AO PRESENTE

      Jamais compreendi você, minha Georgette. Naquela noite, ao voltar para o apartamento quase enlouqueci. Meus tesouros, lembranças conquistadas em viagens, visitas a antiquários, tudo em pedaços, cacos brilhando a luz morna do abajur. E quando lhe procurei, gritando infâmias e amaldiçoando seu nome, pensei que você havia fugido. O que de certa forma era verdade. A visão do seu corpo morto, de uma brancura leitosa, despertou-me o amor que sempre sentir por você, mas que estava adormecido entre minha vida lá fora e nossa monotonia aqui dentro.
      E tardiamente lhe amei e ainda amo. Amo as lembranças envoltas nos objetos tocados por você, que conviveram com você mais do que eu... Horas me vem à mente sua mão delicada segurando uma pequena xícara de porcelana decorada. Horas é o seu sorriso discreto como os vasos de cristais. Depois lhe procuro gente, no vidro de desodorante usado, na planta do banheiro, na bolsa de palha que usavas para ir à feira. Até mesmo em Letícia, agora adormecida ao meu lado, procuro o seu rosto indiferente, apático, entediado com o mundo e eu pensando ser comigo. Ah, Georgette, Georgette... 

(do livro “Psiu, O Síndico Pode Estar Ouvindo” -1987, Fortaleza/Ce)

OS ANCESTRAIS

Lembrava-se vagamente dos primeiros contatos com os fantasmas da família. Após sua última viagem, cansado, doente, com o peso da velhice e solidão trazendo-lhe depressões, voltou ao velho solar, e por essa época aconteceram às primeiras visitas.
Uma noite, logo depois do jantar, procurou a varanda da casa sentindo necessidade de integrar-se ao vazio da noite. Deprimido, pensava em suicídio. O desejo frio de acabar com tudo crescia aos poucos, como parasitas sugando-lhe a razão. Ela apareceu com o silencio peculiar dos fantasmas, sentou-se ao seu lado e riu alto.
- Não vejo nenhuma razão para rir- falou ele.
- Nem eu. Mas deu vontade. Sabe que eu costumava ficar aqui mesmo nesta varanda, quando todos se recolhiam, para rir das minhas angústias?
- E de que adiantava isso?
- Nada. Mas aliviava!
E os dois riram a noite quase toda. Ela era assim, a tia-avó, irmã mais moça de seu avô, que morrera quando ele ainda era criança. Encontravam-se quase todos os dias na varanda, falavam coisa a esmo, tolices, mas que o ajudava a atravessar a crise existencial daqueles dias.
Tempos depois apareceu o bisavô e os outros, começando as longas sessões noturnas. Noites sem fim, enclausurado sob o peso das acusações, gritos histéricos, raivosos, saídos das bocas descarnadas dos ancestrais.
Ele era o último de uma numerosa família que findaria sem descendentes diretos e esse pensamento longe de amargurá-lo, causava-lhe prazer. Os antepassados, porém, fanáticos inquisidores da descendência familiar, não o perdoavam.
- Maldito, negas o sagrado direito da continuidade, da perpetuação do nome e sangue de uma casta? Pois queimarás a eternidade no círculo do arrependimento! Nós, os teus antepassados, te amaldiçoamos!
As palavras de infortúnio do bisavô, antigo coronel da milícia real, ecoavam proféticas por entre as grossas paredes da casa. Os outros parentes, a tia-avó lunática, a tataravô altiva, irônica e ferina, sempre acompanhada de um primo, rapaz calado, olhar frio e calculista, que segundo boatos de família fora seu amante em vida, nada falavam. Deixavam para o bisavô o encargo de acusá-lo. E noite após noite o julgaram sem piedade. O fato de não ter casado, constituído família, filhos para carregassem o insano estigma de um sobrenome, os enlouqueciam.
Não adiantava contar-lhe das viagens, das aventuras em mares de céu aberto cheirando a sal e séculos, desertos solitários, florestas verdes, cidades, prostíbulos, amores clandestinos. Passageiros, mas intensos.
- Lembranças, de que valem as lembranças se não tens a quem contar? Sentimentalismo barato! O que fica da vida é o que se constrói de sólido. Família, filhos que gerarão filhos bens, casas como esta. Viver é isto, não essas aventuras furtivas! – Os gritos do bisavô sempre lhe interrompiam os pensamentos.
Acostumado ao tribunal noturno sentava-se ao anoitecer na sala de estar, cachimbo exalando cheiro de tabaco irlandês, cálice de genebra na mão, à espera dos ancestrais. Chegavam pontuais, silenciosos, etéreos como a fumaça vertida pelo cachimbo. Às vezes divertia-se em vê-los, fantasmas transparentes andando pela sala nervosos, tocando objetos, narrando histórias, como se procurassem resgatar um tempo perdido.
Alguns anos depois, os fantasmas ainda continuavam com as visitas, falando as mesmas coisas, repetindo os mesmos gestos, como num filme rodado diversas vezes. Vencido pela monotonia e a raiva que aos poucos ia nutrindo pelos ancestrais, traçou um plano de vingança. Iria se mataria, e quando eles chegassem com seus discursos pomposos, perceberiam que ele já não existia como matéria física, mas como deles. Sorriu, procurando imaginar a decepção dos antepassados. Apenas uma coisa começava a preocupá-lo. Se não deixava descendentes, quem contaria as suas aventuras num misto de orgulho e saudade, ou choraria no seu túmulo no dia de finados, com flores e velas? Morreria e o mundo jamais saberia de sua existência. Acendeu o cachimbo com mãos trêmulas de velhice. À noite e os fantasmas o encontraram ainda na gasta poltrona de veludo azul.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

POÉTICAS NOITES DE AGONIA (conto)


- As lágrimas choradas pelas mulheres não deixam marcas no mundo... – Ela ficava repetindo a frase seguidamente como uma oração, enquanto segurava com força o terço de contas azuis transparentes.

Lá fora, um vento forte rasgando a planície silenciosa, uivando como que acompanhando seus lamentos. Estática ela esperava as mudanças que destruiriam sua vida.

- Aqui estou eu... revivendo velhos pensamentos que já não me dizem nada, mas que me mostram como as coisas deveriam ser... – Pensava em voz alta.

Encostou-se à janela de vidros imaculadamente limpos e ficou olhando a chuva cair sobre as plantas do jardim, fazendo-as curvar, molhando a terra enrugada, varrendo a poeira do verão. Além das roseiras do seu jardim, outro mundo começava na imensidão desértica da planície descampada. A primeira vez que viu aquelas terras descampadas, quase sem árvores onde pudesse se esconder ou agarrar-se, tivera medo.

A chuva diminuía e já podia ver a casa da filha, branca com telhados vermelhos. Dias atrás a filha mandou-lhe um recado avisando que o quarto estava pronto, esperando-a. Não devolveu a resposta. Por que sair da casa que há cinquenta anos a abrigava?

- Quando se envelhece perde-se tudo, até mesmo a vontade. – Falava entre dentes. Seu marido comprara aquelas terras quando se casaram. Construíram a casa numa colina alta que dominava todo o vale. Na casa tivera os cinco filhos e chorara a morte de dois deles, como também chorara a do marido, alguns anos atrás. Na casa aprendeu a tecer sua vida com paciência e resignação.

Abriu a janela do quarto. A neblina fria, resto da chuva, bateu-lhe no rosto causando calafrios. Respirou fundo. Não deixaria que a levassem da casa.

- Nessa casa construí tudo que conheço. Ela é a minha porta para o mundo real. Houve tempo em que me sentia só. As crianças haviam crescido e partido. Hugo já não estava nesse mundo e a casa parecia grande e vazia. Isso foi antes da rodovia chegar.

Quando construíram a rodovia principal perto da casa, temeu por sua privacidade. Da janela do quarto podia ver os carros que passavam e à noite os roncos dos motores despertavam-na. Quase por brincadeira uma ideia nasceu-lhe e tomou corpo. A princípio pareceu-lhe loucura, mas resolveu tentar. E uma noite, vestida numa capa branca, foi para a estrada pedir ajuda para um filho imaginariamente doente.

O motorista que lhe acudiu os chamados era de meia idade, a seguir falando dos perigos da noite para uma senhora. Tomou chá com bolachas na cozinha cheirando a limpeza, e quando perguntava pelo rapaz doente tinha a atenção desviada com perguntas sobre sua vida de viajante. Era quase manhã quando o homem descobriu a farsa. Irado chamou-a de louca e tentou agredi-la. Assustada, a faca de cozinha sempre bem amolada desde os tempos do marido serviu-lhe de arma. Um só golpe certeiro e mortal na garganta. O homem caiu debatendo-se, jorrando sangue, olhar de agonia e morte. Nunca vira cena tão dolorosamente poética. Arrastou o corpo para o celeiro abandonado perto da casa. Ele foi o primeiro, em pelo menos dez motoristas, atraídos e mortos por ela.

Quando a filha mudou-se para perto tentou livra-se dos corpos, porém, a visão daqueles restos humanos trazia-lhe imagens das noites saborosamente poéticas, onde a morte vencia o desejo de viver. Isso a deixava forte. O desejo da filha em tê-la morando com ela tirar-lhe-á a única distração. E não suportaria isso.

- As lágrimas choradas pelas mulheres não deixam marcas no mundo – repetiu pela centésima vez naquele dia, sem conseguir lembrar-se de onde leu ou ouvia aquela frase.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

O QUARTO NEGRO (conto)

- Se me perguntares mais uma vez se te traio, juro... juro que me mato!
Grita Anyla com os olhos congestionados de emoção, tentando sustentar a raiva que em vão tentava sufocar.
- Não, não, pelo bom Deus, jamais repita isso novamente, amor de minha vida! Pronto, não quero mais saber de nada! Se me trais ou não, não importa!
Lágrimas caíram molhando o vestido vermelho, colado ao corpo, revelando carnes fartas, redondas.
- Sei que não acreditas em mim... Que culpa tenho de minha juventude e se os homens me olham rastejando por atenções? – Fala a Anyla, enxugando o pequeno e oval rosto de quase menina.
Desajeitamento, ele tenta abraçá-la, pedindo-lhe perdão com grossos dedos que acariciam sua face, o pescoço branco e esguio modelado pelo colar de pérolas javanesas, presente de um aniversário. “Ah, como ele era macia, fresca... um frescor saído de carnes bem alimentadas” – Pensava ele.
Seu cheiro de rosas lhe despertava desejos e pensamentos perturbadores. “Quantos homens não desejariam estar no meu lugar, tocando essa pele juvenil? Ou quantos já não o fizeram?”. Então as imagens de mãos, milhares delas, apalpando o corpo de Anyla, sentindo aquela maciez que por direito lhe pertencia, vêm-lhe à cabeça. “Será que também tocariam o colar de pérolas, como ele tocava agora, com intimidade?”
“Será que beijariam seus mamilos eriçados e perceberiam a cicatriz pequena no seio esquerdo, enquanto ela gemia pedindo que lhe beijassem o ventre?” – Aperta com força o delicado pescoço.
- Prostituta! – Ele grita. Um estalar de ossos e o corpo amolecido escorrega de seus braços. Pálido, se recostou na parede do quarto negro, o quarto dos desejos, tentando entender o que havia acontecido. Teria matado Anyla? Há pouco ela soluçava, pulsando vida sob seus dedos.
- Anyla, Anyla... – Soluça ao lado do corpo caído sobre o tapete negro do quarto, inerte, morto. Desesperado, anda pelo recinto esmurrando as paredes forradas de cetim preto, que refletiam o brilho fosco dos muitos abajures acesos, espalhados por todos os cantos.
Senta-se por alguns segundos na poltrona onde ela costumava ler, sentindo o perfume de seus cabelos no encosto. Olha em volta, quase todos os objetos, móveis e paredes eram pretos. De início estranhara o gosto nefasto pela cor preta, que parecia dominá-la. Mais tarde, em explicações não razoáveis, Anyla confessou haver sido, em encarnação passada, uma bruxa inglesa. O negro a reconfortava, acalmando lhe a angustia que vez por outra invadia seu coração quando lembrava não ser ninguém nessa atual vida. Não mais que uma simples amante de um homem rico.
- Por que não torna a fazer bruxarias, minha querida? – Ele costumava dizer, quando ela reclamava ou tocava no assunto.
- Porque agora lhe pertenço e uma bruxa só deve pertencer ao mundo.
- Pensei que as bruxas pertencessem ao diabo,
Ela o olhou com imensos olhos escuros, quase tão pretos como o cetim do quarto. Olhos zombeteiros, sorriu e perguntou:
- E você acredita no diabo, meu bem?
Não soube responder. A imagem vaga, clássica, de um ser com rabo, cascos de bode e chifres lhe assaltou a memória. Não era católico. Porém, havia sido criado como um.
Volta à realidade. O corpo de Anyla ainda está deitado como há pouco. Nada havia mudado, a não ser o tempo, os minutos que passava sob os tic-tacs nervosos do relógio de parede. Teria que agir. Mas continuava parado, perdido nas memórias dos momentos que viveu com Anyla. Ainda não compreendia o que fizera. Por que a matara? Acariciava-lhe o pescoço apertado levemente, enquanto imaginava possíveis amantes. Não queria matá-la, nunca pensou seriamente nessa possibilidade.
- Anyla... Anyla...
Lembrou-se de uma conversa com Anyla, dias antes, sobre um homem estranho, um mestre em alquimia, mago ou qualquer coisa do gênero.
- Ele é maravilhoso, querido! Um verdadeiro alquimista. Transforma metais em ouro e até faz reviver animais mortos! Eu vi, vi sim. Mora aqui próximo, no outro lado da rua.
Sentiu ciúmes do entusiasmo dela, do homem desconhecido. Pediu-lhe que não o visse mais.
Desesperado atravessou a rua molhada pela chuva fina que caía. Bateu na porta de uma casa simples, pintada de branco, com um pequeno jardim na frente. Um homem sem idade definitiva, talvez velho, talvez moço, abriu-lhe a porta.
- Por favor, meu senhor, não me tome por louco, mas ajude-me, ajude-me a reviver Anyla!
O estranho homem ajoelhou-se ao lado do corpo estrangulado, sem perguntas. Auscultou lhe o coração, o pulso e derramou algumas gotas de um frasco azul-escuro. O líquido umedeceu os lábios descorados e desceu garganta abaixo.
-Deite-a na cama. Acordará ao amanhecer.
- Tem certeza?
- Ouça, senhor, só vim até aqui porque gosto de Anyla e creio que ela ainda não está preparada para deixar o mundo da matéria. Faça o que lhe digo e ela estará bem. – Diz o homem e sai como um espectro, sem movimentos bruscos ou bater de portas.
Coloca Anyla na cama larga de cabeceira decorada com pequenos cupidos talhados na madeira. Teria sonhado ou realmente aquele homem existia?
O sol entrou, trazendo vida ao quarto negro, que à luz do dia parecia menos fantasmagórico. Olhou Anyla ainda imóvel. Dúvidas vieram. Levantou-se da poltrona onde permanecera de vigília e tocou-lhe a tez pálida. Parecia morna e levemente suada.
- Meu Deus, ela está... está viva!
O grito ecoou forte, descendo escadas, furando paredes. Abraçou-a sentindo sua respiração lhe aquecido o rosto.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

OS RECÉM-NASCIDOS ESTÃO CHORANDO (conto)

Sentada em frente à janela aberta, ela espera os primeiros raios do sol. Ainda há resto de choro pela casa, ecoando como uivos assombrados, perdidos no vazio dos cômodos abandonados há anos. Ela pensa: “Esta noite eles estiveram impossíveis. Não pararam de chorar um instante sequer...”. Ela passara a noite em claro, estava cansada. Nem mesmo as canções de ninar os acalmaram. Parecia que nada os fariam parar com aquele choro lamentoso, sofrido, de cobranças e medo. Sons lhe resgatando dívidas do passado, levantando-lhe emoções enterradas com pequenos corpos arroxeados.
Casou-se Jovem. O marido, com o dobro de sua idade, queria filhos, muitos filhos. Encheria com vozes, gritos, vida, o casarão antigo em que moravam, costumava dizer ele. Não contradizia os planos do marido, porém, apavora-se com a ideia. Adorava a casa vazia, o silêncio lúgubre dos corredores enchendo cada canto, móvel ou paredes de harmoniosa ausência. Crianças quebrariam aquela suave falta de sonoridade que mergulhava em paz seus dias.
A cada insistência do marido, mais repudiante lhe parecia à ideia. Passou mesmo a odiar crianças, seres que invadir-lhe-iam a vida, a casa, tirando-lhe o gosto da solidão, companheira querida. E foi com total repulsa que percebeu a gravidez, meses mais tarde. O marido eufórico encheu-a de presentes delicados, esperando ver um pouco de felicidade no rosto pálido, fechado, angustiado. Mas nada que fizesse adiantaria ou faria desaparecer a depressão que a fazia mergulhar num mundo ilusório, fuga última para o esquecimento da gravidez indesejada.
Passava os dias trancada no quarto, olhando o teto, apática a tudo. Conversava com as paredes da casa, sua única amiga. Uma noite, o marido dormindo profundamente, ela levantou-se. Sentia-se estranha, pesada, com falta de ar e umas leves dores no baixo ventre. Andou pela casa, pelos corredores escuros, sentindo amor por cada pedaço, canto escondido atrás de móveis, quadros, teias de aranhas quase seculares, despercebidas pelos empregados de tão ocultas. Respirou fundo, procurando guardar dentro de si o ar abafado e úmido da sala.
Sentiu sede, boca amarga, seca. A cozinha grande era banhada pelas sombras de velhos armários que lhe dava um aspecto irreal. Deixou cair o copo com água quando sentiu a primeira dor lhe rasgando as entranhas. A segunda a fez se baixar entre as pernas, e a terceira deixou-lhe com a barriga dura, torta para um lado. Em completo terror, ela pensava em garras invisíveis dilacerando-lhe o corpo de alto a baixo.
Quis gritar. Não conseguia de tão intensas que eram as dores. Contrações fortes, peso no ventre querendo romper a vagina. Um líquido morno, espesso, molhou suas pernas, instintivamente agachou-se e como um animal assustado, pariu. Por alguns minutos ficou olhando aquela coisa arroxeada, envolta em sangue, sem saber o que fazer. Por fim, com certo nojo, pegou a criança no colo. E tudo foi extremamente rápido. Miúdo e escorregadio, o recém-nascido deslizou por entre suas mãos como um pequeno fardo. Nem um gemido, apenas um barulho surdo e o corpinho imóvel. Gritou alto.
O marido enterrou a criança no fundo do jardim. Não foi ao enterro, preferiu ignorar tudo. Sentia-se livre e feliz novamente. Vagava pela casa como se nada houvesse acontecido, cuidando das plantas do jardim enquanto cantarolava boleros românticos.
Um ano depois, novamente grávida, novamente refugiada num mundo de fantasias e depressões. Odiou o marido. Ele era o culpado por tamanho incômodo. A única amiga era a casa. Conversavam, armavam pequenos complôs. Dias, meses, passando rápido sem serem percebidos por ela. O marido já não lhe dava tanta atenção. Vivia viajando, dormindo noites fora. Uma madrugada, ele ausente, as dores voltaram. Não se assustou. Gritou alto, fez força e nasceu o segundo filho, que foi prontamente sufocado com o lençol da cama. Enterrou o pequeno corpo sob a escada do porão. Ao marido, apenas a desculpa que o filho nascera morto.
Vieram muitas outras gravidezes, porém, nenhuma criança sobreviveu às suas crises de ódio. Estrangulava-as, sufocava-as ou simplesmente as deixavam morrer de inanição. O marido acreditando ser o acaso do destino, as mortes dos filhos. Algum tempo depois, também morreu. Ela, aliviada, pensou que finalmente estava livre.
Viveu alguns meses em eufórica sensação de paz, comunhão perfeita com a casa, até que tudo começou. Primeiro os pesadelos. Pequeninos corpos arroxeados e sangrentos lhe abraçando, sufocando-a sem piedade. Acordava trêmula. Depois, mal escurecia, os sons de várias crianças recém-nascidas chorando ecoavam pela casa, enlouquecendo-a. De nada adiantava fechar os ouvidos, os sons pareciam vir de todos os lugares, inclusive de dentro dela mesmo. Passou a cantar velhas canções de ninar para abafar os choros e aliviar a tensão. Notou que quando cantava, eles paravam, pareciam ouvi-la. E então, como uma mãe extremosa, passou a cantar, ninando os filhos mortos noite adentro até ao amanhecer.
Sobre as copas das árvores do jardim o céu clareava. Sai de perto da janela. Suspira aliviada, procurando refrescar a garganta dolorida pelas horas ininterruptas de canto, com um gole d’água. A casa está em silêncio. Fecha a janela devagar, com medo de acordá-los. Antes de sair do quarto pintado de azul e rosa, enfeitado com delicados móbiles de palhacinhos vermelhos que dançam rodopiando no ar, lança um olhar de carinho e zelo para os berços enfileirados junto à parede, onde imóveis, os ossos descarnados de alguns recém-nascidos jazem empoeirados.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

O DIÁRIO DA SUICIDA (conto)


Olhei fascinada, para os retratos que caíram das páginas corroídas do diário. Era como uma viagem no tempo, resgatando imagens de um passado que não conheci. Um homem, roupas elegantes, sorriso indefinido. Achou-o sedutor, quase sinistro. Na dedicatória meio apagada qualquer coisa como “a Leocádia com amor” e uma data: Janeiro de 1939. A assinatura era ilegível. Um pouco maior, a outra fotografia mostrava uma moça de rosto delicado, abraçada a um buquê de flores do campo. Parecia feliz emoldurada pela aura de inocência que transparecia na letra miúda, feminina da dedicatória da foto. Palavras de carinho para alguém chamado Maurício, sem dúvida o homem da outra foto.

Descobri o diário havia por acaso. Estava limpando uma escrivaninha que pertenceu ao meu avô, quando percebi um fundo falso em uma das gavetas. Envolto com papéis de seda desbotados estava o livreto de encadernação em couro preto com as iniciais LB. O sobrenome sem duvida era Bastos, da família de seu avô. E o L era de Leocádia... Pedaços de histórias da família brotam em pequenos flashes na minha mente. Leocádia, a irmã mistério de meu avô, aquela onde os rostos se fechavam quando perguntávamos quem era. Uma vida nunca era comentada, tabu calado, sufocado como o mais inviolável dos segredos de família.

Sempre pensei nessa tia como uma velha solteirona, talvez esquisita e cheia de manias. Nunca esperei este rosto angelical, quase bonito, lembrando-me vagamente o da minha mãe quando jovem. Mais isso não era extraordinário, pouco conhecíamos sobre a vida dessa tia, apenas que era a irmã mais nova de meu avô. Sem perda de tempo, acomodo-me no divã da sala com o diário entre as mãos.

“Novembro, 1939”.
“Ganhei da prima Inácia, como presente de aniversário, esta brochura, na qual aproveitei para desabafar meus pensamentos. É noite. Todos dormem e escuto o barulho de suas respirações batendo contra as paredes do meu quarto. Estou angustiada e infeliz. Maurício viajou há duas semanas e não me mandou notícia alguma. O que terá lhe acontecido? Será que me esqueceu? Acho que não terei a paciência de Penélope à espera de seu Ulisses.”
“(...) que insondável é a alma de homem. Em que águas escuras mergulham seus pensamentos? Maurício, Maurício, onde tu te encontras meu amor? Que ventos arrebataram-te de meus braços?”.

“Dezembro, 1919”.
“Todos estão preocupados comigo. Há dias que não saio do quarto e alimento-me apenas de sucos ou sopas. São uns tolos! Estão pensando só em meu corpo, minha carne perecível. E na minha alma, quem pensa? Quase quatro semanas sem uma única linha, um bilhete sequer! Mauricio, em que caminhos tu te perdestes? Será que terei de descer aos infernos para consultar Teiresias sobre teu paradeiro? Ou será que já moras na casa de Hades e sua Perséfone?”.

“(...) Felicidade, Anael – anjo do amor - escutou minhas preces! Maurício escreveu uma longa e terna carta. Regressa amanhã e ficaremos noivos. Parece um sonho, um coloridíssimo, azul, rosa, amarelo, branco, branquinho sonho de amor!”
“(...) Marcamos a data do casamento para maio. É tão mais romântico. O mês das flores, de Nossa Senhora. Até mesmo o nome é gostoso de escrever, pronunciar – maio! M-a-i-o!”.

“Janeiro, 1920”.
“Ontem fomos, eu e mamãe, à casa de dona Maria Quitéria encomendar o enxoval. Toalhas, lençóis, camisolas, tudo em renda francesa e linho. A família não aceita bem nosso casamento, eu sei. Mas é só uma questão de tempo para todos amarem Mauricio, como eu amo!”

“Março, 1920”.
“Há algum tempo que não escrevo. Também pudera, são tantos os compromissos! Compras do enxoval, provas do vestido... estou cansada... e triste. Maurício viaja em excesso. Fico tanto tempo sozinha que penso por vezes, não ter noivo, que tudo realmente não passa de um sonho. Diz ele que trabalha por nosso futuro, por minha segurança. Não sei, gostaria de ter um futuro mais pobre e tê-lo mais tempo ao meu lado. Sinto falta da sua voz, do cheiro da pele... ai, se mamãe lesse o que escrevo na certa diria que sou uma perdida! Não importa, estou noiva, vou casar. Mulheres só ficam perdidas quando não têm homens. Até a mais reles das prostitutas fica respeitada quando tem seu cafetão! É a celebre história do homem sempre tentando engolir nosso mundo. Se tudo no universo é masculino para que serve a mulher?’’

“(...) Estou enlutada, revoltada. O céu fechou-se sobre mim, sobre minha dor. O mundo é cruel, as pessoas são cruéis! Quem me mandou essa carta, essa maldita carta? Não acredito que o meu Mauricio tenha mulher e filhos no interior do Estado! Não, ele só tem a mim, sua doce violeta, como sempre me chama. Irei trancar-me nesse quarto e só sairei quando me disserem que tudo não passa de uma brincadeira, uma maldita brincadeira! ’’.

“(...) Maurício veio ver-me hoje. Achou-me pálida, doentia. Pareceu preocupado. Não tive coragem para contar-lhe da carta anônima. Tenho medo que se aborreça, pense que não tenho confiança nele. Pobre Maurício tão perfeito, tão amoroso, meu querido Orfeu!”

“Abril, 1920”.
“Quero morrer! Outra carta, outro despejar de maledicências! Só que agora há provas... As fotografias de Maurício, dois filhos e uma mulher morena e tão jovem quanto eu, estão sob o alcance de meus olhos nesse momento. Chama-se Arlinda. Quero rasgar esta foto e não consigo... mas não posso acreditar em tamanha traição! Ah, como odeio a essas duas carinhas que têm os mesmos olhos de Maurício e me fitam risonhas através desse maldito retrato!’’

“(...) Há três dias que me recuso a falar com o canalha. Minha família está em polvorosa, sem nada entender e eu tampouco dou explicações. Que pensem que estou louca, mas nada direi, não quero expor os meus a tamanha vergonha. Que Deus me ajude.”

“Maio, 1920”.
“Faltam apenas dez dias para o casamento e ainda não sei o que vou fazer. Maurício noiva como o mais perfeito dos homens, cínico! Estou cada vez mais angustiada, deprimida. Quase não durmo ou me alimento. Sinto-me como um espectro ambulante, sem raízes ou futuro. Sei que tenho de fazer algo, mas fazer o que, se o amo com mais força e desejo? Acho que estou enlouquecendo!”

“(...) Finalmente a decisão. Mandei-lhe um bilhete hoje, pedindo que se encontre comigo na casa da praia.”

“(...) Tudo foi muito rápido. Não sei se foi um sonho ou se aconteceu... Faz algumas horas que cheguei da praia... a casa do encontro... Tomei um banho e estou agora deitada, escrevendo, procurando entender tudo que houve. Estou calma e até feliz novamente, solta, livre... Sei que não terei perdão perante os homens, mas Deus sabe que o que fiz era o que tinha de ser feito.

Cheguei na casa da praia muito antes de Mauricio. Havia comprado sorvete de passas com creme (ele sempre gostou de sorvetes) e fiquei esperando na sala, sorvete derretendo-se na embalagem. Ele chegou alegre, parecendo criança em dia festivo. Sentou-se e eu perguntei-lhe sobre Arlinda e as crianças. Ficou pálido, pensei que fosse desmaiar. Depois me contou tudo, numa voz arquejante e baixa. Não me olhava e eu tampouco o olhava. Meu olhar estava fixo numa machadinha que ficava presa na parede sobre o sofá, como ornamento. Bastava estender o braço e pegá-la, eu pensava o tempo todo... e foi o que fiz. Não sei como, mas logo que me vi com a machadinha de cabo preto na mão, golpeei a cabeça de Maurício com um prazer intenso, carregando de raiva e pavor! Emoção que me deu tamanha força para descarregar dois meses de angústias.

Golpeei Mauricio diversas vezes, não sei quantas, só parei quando vi sua cabeça parecendo uma pasta avermelhada, cheia de cabelos e miolos saltando libertos. Depois... eu acho... acho que comecei a devorar pedaços de carne que retirava do corpo de Maurício com a própria machadinha. Comia compulsivamente. Comia e vomitava e tornava a comer. Comi quase todo o corpo de Mauricio... e não me arrependo. Ele era meu e virou alimento para o meu corpo. Nada mais justo! E agora tenho que seguir meu destino. Não posso mais viver. ’’

O diário interrompe-se nesse trecho, o restaurante são folhas amareladas. Quase sem fôlego fechei-o num só impulso. Não consegui dormir pensando em Leocádia com a boca cheia de sangue, mastigando entre lágrimas a carne crua do seu amante.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

LILITH (conto)



“Porque antes de Eva foi Lilith, lê-se num texto hebraico (...). Lilith era uma serpente, foi a primeira esposa de Adão e lhe deu filhos resplandecentes e filhas radiantes” ( O Livro Dos Seres Imaginários – J. L. Borges)

- Fitem meus olhos... fitem minha boca...fitem meu corpo!
E mostrava olhos dilatados de desejos, boca salivando entre dentes minúsculos e língua ágil. Manejando os quadris com luxúria, desabotoava o vestido vermelho, libertando seios brancos e opulentos. Podia-se ouvir a respiração acelerada dos que assistiam à exibição.
Num canto, por trás das cortinas de seda transparentes, dois homens negros tocavam instrumentos medievais e cantavam mantras numa língua desconhecida. A moça bamboleava o corpo como uma serpente de encantamento, jogando os longos cabelos em todas as direções. Eles pareciam ter vida própria como as cobras de Medusa. Dançava em movimentos lentos, ancestrais, quase mágicos.
O publico, homens de todas as idades, gritavam hipnotizados ou se entreolhavam querendo saber quem era a dançarina. A moça, como em transe, dançava alheia a tudo ou a todos, rodopiando nos acordes mais ritmados, contorcendo-se freneticamente. Murmúrios corriam entre a fumaça dos cigarros que enublavam o recinto escuro e sufocante. Todos ali haviam ganhado convites para o espetáculo e mesmo perguntando-se quem era aquela mulher misteriosa, pouco se importavam alheios agora, ao mundo lá fora.
Os dois músicos, companheiros da moça, pareciam preocupados:
-Ela está muito fraca... Não sei aguentará até o momento certo! Disse um dos músicos. E os dois aceleram a música fazendo a moça dançar mais freneticamente, até cair esparramando os cabelos negros no chão áspero. Suspense, os homens se olham sem entender. Um dos músicos leva uma garrafinha azul cravejada de pedras brilhantes, que ao abrir exala um perfume estranho com cheiro de passado. A moça aspira e lentamente levanta-se. Os movimentos são de uma cobra rastejante, levando-se e bamboleando sensualmente os quadris como que despertando de um sono restaurador. Alívio na plateia.
De uma brancura anormal, o corpo da dançarina parecia transparente. Desceu ao público. Enlouquecidos, os homens socavam-se uns aos outros procurando tocá-la. Ela desvencilhava-se com agilidade, deixando-os mais excitados.
- Vocês me querem? ....Querem tocar minha pele de avelã... meus seios de jasmim... meu hálito doce como o mel que corre na terra prometida? Então venham, venham a mim!
Em bandos, eles se atiravam. Um a um eram selecionados e entregues à moça, que os agarrando pelos cabelos, beijava-os voluptuosamente arrancando-lhes a língua e sugando o sangue que escorria borbulhante. Aos poucos o recinto foi ficando repleto de corpos jogados a esmo.
Muito mais tarde, nuvens pesadas formando-se para desaguar, relâmpagos e trovões cortando o céu escuro, a moça é carregada pelos músicos e posta num carro negro puxado por cavalos enfeitados com flores brancas como a lua. Adormecida, Lilith, a Serpente, estaria alimentada até outro espetáculo. Partia saciada, rumo talvez ao mar vermelho, ao encontro dos demônios e espíritos da noite, seus companheiros.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

O PLANTADOR DE OSSOS (conto)

- “O diabo nos envolve com criaturas formadas não por si mesmas, mas por Deus e com várias delícias consonantes a sua própria versatilidade; não como animais com comidas, mas com árvores, animais e encantamentos e cerimônias”.

Deliciava-me ficar atrás da porta escutando a voz melódica e suave de meu avô em suas infindáveis leituras diárias de santo Agostinho. Lia em voz alta, pra que as palavras ecoassem pela casa e voltasse em verdade para seus ouvidos.

A tarde escurecia. A pouca luz que entrava deixava meu avô, sentado perto da janela, pequeno, quase um menino feio e enrugado. Aproximei-me para fazer-lhe um afago. Fechou o livro bruscamente, olhou-me com frieza por trás das grosas lentes dos óculos de aros dourados, e disse-me entre os dentes:
- Não me toque, você agora é uma delas!
Baixei a mão que estava no ar, pronta para o caminho.
- Já conversamos diversas vezes sobre isso, vovô. Não tenho culpa, é a maldição da família – falei tentando parecer serena.
- Você poderia ter rompido com esse costume diabólico se quisesse. Você era diferente delas. Costumava correr pelos jardins e chorava quando via as cruzes. Ainda lembra-se das cruzes?
- É claro que sim. Lembro-me que nessa época também costumava lhe chamar de plantador de cruzes, ou de ossos, não sei bem.
- “Meu querido plantador de ossos”, era assim que me chamava. Por muito tempo alimentei a esperança de que finalmente a família se veria livre de tudo, e assim eu poderia morrer em paz. Você era essa esperança. Não se parecia em nada com elas – a voz perde a intensidade e o velho cala-se.
Encosto-me ao parapeito da janela sentindo um cheiro adocicado de frutas maduras. Olho para o jardim e digo:
- As árvores estão carregadas, vovô. O senhor não acha que as frutas que amadurecem naturalmente são mais gostosas? – Pergunto procurando desviar o assunto.
- Deixe-me, por favor. Você ainda cheira a sangue e isso me incomoda. Vá embora, deixe-me em paz, sua maldade me fere!
Saio do quarto tentando ficar calma. No mundo só havia uma pessoa capaz de me deixar abalada: meu avô.

Encontrei tia Úrlis e vovó na sala dos Mistérios. As duas tricotavam em silêncio, com fios de cabelos humanos, uma cinta. Sabia que não gostavam de interferências quando trabalhavam, porém, eu estava tão deprimida que precisava falar com alguém.
- Estive com o vovô. Ele está impossível!
- Ele a deixou-a nervosa novamente, não é querida? Você não deveria procurá-lo. – Respondeu tia Úrlis numa voz rouca e baixa como se há muito não falasse.
- Não seja dura, Úrlis. A menina precisa aprender a se defender, porém, ela e o avô se gostam! – Reagiu prontamente vovó. – É certo que seu pai nunca concordou com os costumes das mulheres de nossa família. Acha diabólico... Pobre homem, é católico demais para entender outras formas de adorações. Mas o que esperar de alguém que vivia num mosteiro, quando nos conhecemos? – Os olhos de vovó ficam perdidos nas lembranças de um passado a muito distante. – Sabe que ele nunca disse que me amava? Dizia apenas que queria salvar minha alma, e eu gostei dessas palavras ingênuas e sinceras... Mas dai nos casamos e esse foi nosso erro. – Vovó larga as agulhas e se aproxima tocando-me levemente nos ombros, com mãos tão frias que pareciam garras de gelo.

– Por gerações somos o que somos. – Ela continua a falar. – É mais forte do que nós, do que nossos desejos. É isso que seu avô não compreende.
- Gostaria apenas de saber por que vovô nunca nos deixou, se nos odeia tanto? – Pergunto quase chorando.
- Porque cada um carrega seu destino sem poder fugir dele, querida. Seu avô sabe disso. – Vovó dar um suspiro cansado voltando ao trabalho, deixando uma sensação de silêncio incompleto no ar.
- O destino dele é plantar ossos? – Perguntei tentando continuar o assunto.
- Não nos aborreça mais, menina! – cortou-me friamente tia Úrlis. – Volte para seu quarto e prepare-se. Amanhã a lua entra em minguante, portanto, só temos mais esta noite para as celebrações.

Olhei com rancor para a mulher alta e esguia, irmã mais velha de minha falecida mãe. Mesmo depois de ter-me iniciado no culto das mulheres, ela ainda não me respeitava. Continuava a tratar-me asperamente e isso eu jamais perdoaria. Saí da sala pisando forte antes que desabasse a chorar ali mesmo.

O espelho do penteador que pertenceu a minha mãe olha-me, devolvendo imagens de mim mesma onde a perplexidade do meu rosto parecia responder as indagações sobre o meu destino... meu infalível destino que não me conduzia a nada nesta vida. Pelo menos, era essa a sensação que corria lentamente por todo o meu ser. Visto a túnica alaranjada de tecido tão leve que deixa a minha pele arrepiada. Essa sensação faz a minha consciência crítica evaporar-se, deixando lugar apenas para os deveres de uma iniciada.

Havia pelo menos dez mulheres quando chegamos às pedras sagradas. Eram pedras negras e pontudas, que se abriam para um abismo profundo rumo a um rio revolto lá embaixo. Cânticos roucos de louvores se fazia ouvir a distância. Há cinco estações que eu frequentava um sabá, porém, a excitação continuava como no primeiro. O unguento de ervas que esfregávamos em nossos corpos, enquanto dançavam em círculos, dava uma sensação de dormência que parecia nos deixar flutuando. E depois então, que bebíamos as porções preparadas por tia Úrlis, parecia que voamos de tão leve que ficávamos!

Este ritual era o mais importante e o mais difícil. Mas não tinha como fugirmos dele. A Mãe Terra necessita do sangue de seus filhos para sobreviver! Quando as mulheres me conduziram ao um pequeno altar no meio das pedras e colocaram a criança nos meus braços, senti o coração parar... a criança não devia ter mais de um ano... Ela estava adormecida pelas ervas que havia bebido. Mesmo com o coração pesaroso, não fugi ao meu dever. Sentia a presença de seres da natureza metamorfoseados em animais diversos, que espiavam a dança sagrada esperando pacientemente a comunhão.
Deitei a criança no altar, despi os panos que cobriam seu pequeno corpo orando a grande Mãe Terra, oferece-lhe o sangue puro e a alma imortal daquele pequeno ser, e erguei o punhal...

Acordei tarde, como geralmente fazia depois de um ritual, e encontrei vovô no jardim com algumas flores na mão.
- Que coisa boa lhe ver aqui fora. – Saudei-o alegre.
- Estou colhendo flores para o túmulo do bebê que vocês assassinaram ontem. É o mínimo que posso fazer.
- Por que se martirizar com isso, meu avô? O senhor já devia ter-se acostumado, após todos esses anos. – Respondo irritada.
- Os mártires, os místicos, são feitos de outras matérias, assim como os sombrios opressores da vida. – Ele respondeu sem me olhar, afastando-se com seus passos trôpegos para o fundo do jardim, onde centenas de pequenas cruzes de madeiras despontavam como num campo semeado.

Este era o cerimonial sagrado de meu avô. Ritual após ritual de fertilização da terra, há mais de cinquenta anos, que ele recolhia os ossos e restos mortais das crianças usadas na comunhão e os enterravam cuidadosamente, como se plantasse sementes valiosas.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)