domingo, 6 de março de 2011

O SUAVE CHEIRO DAS MANGAS MADURAS (conto)


     
     A quieta noite de outubro é invadida pelos murmúrios da sala ao lado, onde Antônio está sendo velado. O cheiro adocicado das velas queimando me enjoa, assim como as rezas e as conversa dos poucos amigos que ainda estão no velório, teimando em relembrarem os bons momentos com o morto. Fico em dúvida se choro agora ou mais tarde, protegida no meu quarto.
    Toco suavemente a caderneta encapada de couro marrom guardada no bolso do casaco, sinto sua consistência macia e isso me acalma. Lá fora uma noite de céu estrelado me espia pela janela aberta da sala, dando-me a sensação de inutilidade e pequenez. Olho os retratos na mesinha ao lado da poltrona onde me encontro afundada na minha dor, e numa das fotos Antônio me sorrir alegre e jovial fazendo-me voltar para outros tempos. Nervosa, aposso-me da foto e a guardo na bolsa. Lembro novamente da caderneta. Tiro-a do bolso e a folheio discretamente, páginas amareladas pelo tempo, letras contundentes escritas com presa ou emoção... a letra de Antônio.
     Levanto a cabeça e digo para mim mesma: “o retrato e a caderneta... as minhas heranças!”. Guardo tudo apressadamente, vozes chorosas se aproximam da sala onde me encontro. Helena, a viúva gorda e sufocada num vestido cinza entra amparada pela única filha, me cumprimenta com um sorriso que lembra uma careta e senta-se ao meu lado. Quero sair correndo, voltar para o lado do caixão de Antônio. Mas não consigo me mover.
     - Perdemos Antônio, não é Laura? Perdemos Antônio... – Ela diz enquanto assua alto o nariz. Aperto-lhe a mão e saio rapidamente sem lhe dar resposta.
      Não fui ao enterro. Preferi ficar em casa olhando o retrato de Antônio e lendo a pequena caderneta de couro marrom que me foi entregue pelo melhor amigo dele - seu Jerônimo, o quitandeiro da esquina, que a mais de vinte anos vende as mangas do meu quintal. Conheci Antônio na quitanda dele.
    - Então é do seu quintal que vem o cheiro dessas maravilhas? - Perguntou-me ele num mês de janeiro de muitos anos atrás. Era então um jovem professor de longos cabelos ondulados e poeta nas horas vagas. Fiquei encabulada e sorri timidamente enquanto entregava a seu Jerônimo o cesto repleto de mangas. Ele pegou uma das frutas, a mais redonda e rosada, cheirou-a e disse sorridente:
    - O cheiro doce de uma manga madura desperta sonhos e misteriosos... É como tocar nos seios macios de uma mulher... - Vendo meu embaraço, ele se desculpou. – É que enlouqueço quando tenho uma dessas gostosuras nas mãos. Obrigado, muito obrigado por cultivar mangas!
     Ri do seu jeito alegre e franco e nos tornamos amigos. Era recém-casado e sua mulher esperava o primeiro filho. 
       Passou a me visitar quase todos os fins de tarde, após o trabalho. Conversamos sobre tudo enquanto tomávamos refresco de manga. Acostumei-me com sua presença cheia de poesia e anseios. Sentia falta quando por um motivo ou outro não aparecia. Não lembro quando comecei a me apaixonar por ele. No princípio escondia os sentimentos até de mim mesma. Depois, quando finalmente admiti está apaixonada, vivi momentos de verdadeiro inferno com medo de ele perceber meus sentimentos. Respeitava nossa amizade e não queria constranger Antônio. Passamos anos e anos nos vendo quase todos os dias, conversando sobre poesia, livros, sonhos, seus medos e projetos, tudo como dois bons e fieis amigos.  
  Andando pela sala onde costumávamos ficar, penso como será a vida sem Antônio. Sei que terei de continuar apesar da falta, mas será muito difícil! Ele era um ponto de referência na minha vida. Sem ele é vazio, falta, solidão. Leio mais uma vez a caderneta que ele me deixou. Um riso nervoso se apodera de mim. Ouço o som da minha risada e quero ficar assim pelo resto da vida. Que vida? Minha vida era os fins de tardes com Antônio, quando cada poro do meu corpo ficava alerta, esperando o contato delicado e furtivo das suas mãos encontrando as minhas casualmente. Ou seu beijo leve no meu rosto, quando se despedia.
 Meu coração batia apressado quando sentia o cheiro da sua colônia misturada ao hálito cheirando a mangas. Sei que o amei com o coração de uma mulher solitária e madura... Tão madura como as mangas do meu quintal, prontas para serem colhidas e devoradas.
 Escuto meio distanciada uma voz rouca, a minha voz, lendo selvagemente aos berros, para que as paredes brancas, os móveis e os objetos daquela sala - únicos testemunhos dos meus delírios, escutassem pela primeira vez as confissões de um homem que assim como eu, passou a vida se escondendo.
  “Não tenho esperanças. Ela jamais me olhará como homem. É leal demais a nossa amizade para me deixar entrar na sua vida de outra maneira. Ah, meu Deus, e como eu a desejo! Como desejo tocar seu corpo, beijar seus seios rosados como as mangas que me presenteia...”

(do livro “As Várias Maneiras de Amar” – contos - 1999, Fortaleza/Ce)

Um comentário:

  1. Emocionante.
    Li quase sem respirar.

    Abraços e boa semana.

    http://sabordaletra.blogspot.com/

    ResponderExcluir