sábado, 5 de março de 2011

O QUARTO NEGRO (conto)

- Se me perguntares mais uma vez se te traio, juro... juro que me mato!
Grita Anyla com os olhos congestionados de emoção, tentando sustentar a raiva que em vão tentava sufocar.
- Não, não, pelo bom Deus, jamais repita isso novamente, amor de minha vida! Pronto, não quero mais saber de nada! Se me trais ou não, não importa!
Lágrimas caíram molhando o vestido vermelho, colado ao corpo, revelando carnes fartas, redondas.
- Sei que não acreditas em mim... Que culpa tenho de minha juventude e se os homens me olham rastejando por atenções? – Fala a Anyla, enxugando o pequeno e oval rosto de quase menina.
Desajeitamento, ele tenta abraçá-la, pedindo-lhe perdão com grossos dedos que acariciam sua face, o pescoço branco e esguio modelado pelo colar de pérolas javanesas, presente de um aniversário. “Ah, como ele era macia, fresca... um frescor saído de carnes bem alimentadas” – Pensava ele.
Seu cheiro de rosas lhe despertava desejos e pensamentos perturbadores. “Quantos homens não desejariam estar no meu lugar, tocando essa pele juvenil? Ou quantos já não o fizeram?”. Então as imagens de mãos, milhares delas, apalpando o corpo de Anyla, sentindo aquela maciez que por direito lhe pertencia, vêm-lhe à cabeça. “Será que também tocariam o colar de pérolas, como ele tocava agora, com intimidade?”
“Será que beijariam seus mamilos eriçados e perceberiam a cicatriz pequena no seio esquerdo, enquanto ela gemia pedindo que lhe beijassem o ventre?” – Aperta com força o delicado pescoço.
- Prostituta! – Ele grita. Um estalar de ossos e o corpo amolecido escorrega de seus braços. Pálido, se recostou na parede do quarto negro, o quarto dos desejos, tentando entender o que havia acontecido. Teria matado Anyla? Há pouco ela soluçava, pulsando vida sob seus dedos.
- Anyla, Anyla... – Soluça ao lado do corpo caído sobre o tapete negro do quarto, inerte, morto. Desesperado, anda pelo recinto esmurrando as paredes forradas de cetim preto, que refletiam o brilho fosco dos muitos abajures acesos, espalhados por todos os cantos.
Senta-se por alguns segundos na poltrona onde ela costumava ler, sentindo o perfume de seus cabelos no encosto. Olha em volta, quase todos os objetos, móveis e paredes eram pretos. De início estranhara o gosto nefasto pela cor preta, que parecia dominá-la. Mais tarde, em explicações não razoáveis, Anyla confessou haver sido, em encarnação passada, uma bruxa inglesa. O negro a reconfortava, acalmando lhe a angustia que vez por outra invadia seu coração quando lembrava não ser ninguém nessa atual vida. Não mais que uma simples amante de um homem rico.
- Por que não torna a fazer bruxarias, minha querida? – Ele costumava dizer, quando ela reclamava ou tocava no assunto.
- Porque agora lhe pertenço e uma bruxa só deve pertencer ao mundo.
- Pensei que as bruxas pertencessem ao diabo,
Ela o olhou com imensos olhos escuros, quase tão pretos como o cetim do quarto. Olhos zombeteiros, sorriu e perguntou:
- E você acredita no diabo, meu bem?
Não soube responder. A imagem vaga, clássica, de um ser com rabo, cascos de bode e chifres lhe assaltou a memória. Não era católico. Porém, havia sido criado como um.
Volta à realidade. O corpo de Anyla ainda está deitado como há pouco. Nada havia mudado, a não ser o tempo, os minutos que passava sob os tic-tacs nervosos do relógio de parede. Teria que agir. Mas continuava parado, perdido nas memórias dos momentos que viveu com Anyla. Ainda não compreendia o que fizera. Por que a matara? Acariciava-lhe o pescoço apertado levemente, enquanto imaginava possíveis amantes. Não queria matá-la, nunca pensou seriamente nessa possibilidade.
- Anyla... Anyla...
Lembrou-se de uma conversa com Anyla, dias antes, sobre um homem estranho, um mestre em alquimia, mago ou qualquer coisa do gênero.
- Ele é maravilhoso, querido! Um verdadeiro alquimista. Transforma metais em ouro e até faz reviver animais mortos! Eu vi, vi sim. Mora aqui próximo, no outro lado da rua.
Sentiu ciúmes do entusiasmo dela, do homem desconhecido. Pediu-lhe que não o visse mais.
Desesperado atravessou a rua molhada pela chuva fina que caía. Bateu na porta de uma casa simples, pintada de branco, com um pequeno jardim na frente. Um homem sem idade definitiva, talvez velho, talvez moço, abriu-lhe a porta.
- Por favor, meu senhor, não me tome por louco, mas ajude-me, ajude-me a reviver Anyla!
O estranho homem ajoelhou-se ao lado do corpo estrangulado, sem perguntas. Auscultou lhe o coração, o pulso e derramou algumas gotas de um frasco azul-escuro. O líquido umedeceu os lábios descorados e desceu garganta abaixo.
-Deite-a na cama. Acordará ao amanhecer.
- Tem certeza?
- Ouça, senhor, só vim até aqui porque gosto de Anyla e creio que ela ainda não está preparada para deixar o mundo da matéria. Faça o que lhe digo e ela estará bem. – Diz o homem e sai como um espectro, sem movimentos bruscos ou bater de portas.
Coloca Anyla na cama larga de cabeceira decorada com pequenos cupidos talhados na madeira. Teria sonhado ou realmente aquele homem existia?
O sol entrou, trazendo vida ao quarto negro, que à luz do dia parecia menos fantasmagórico. Olhou Anyla ainda imóvel. Dúvidas vieram. Levantou-se da poltrona onde permanecera de vigília e tocou-lhe a tez pálida. Parecia morna e levemente suada.
- Meu Deus, ela está... está viva!
O grito ecoou forte, descendo escadas, furando paredes. Abraçou-a sentindo sua respiração lhe aquecido o rosto.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

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