sábado, 5 de março de 2011

AS ALMAS GOSTAM DOS VENTOS FORTES (conto)

O fogo bocejava entre línguas retorcidas e ardentes, tecendo no reflexo de luz imagens ancestrais que povoam os recantos da velha cozinha.
- Antigamente nosso destino era esperar. Se não fosse pelas chuvas e as colheitas ou pelo sol para endurecer a terra molhada de tanta água, era por nossos homens, que teimavam em debandar de encontro às cidades, onde as luzes e os cheiros doces das mulheres de pele clara os seduziam. – Diz a avó em voz baixa, quase sussurrando.
- E hoje, esse ainda não é o destino? – Pergunta a moça jovem, quase menina.
- Não sei. O mundo gira tão depressa hoje em dia, com ele nossos sonhos, nossos pensamentos. Acho que girava mais devagar no meu tempo de nova. Ou será que o sol nascia mais cedo? O certo é que tudo mudou... os homens ainda se vão, mas já não retornam... Os dias são curtos e vazios como sementes secas... Eles se iam a bandos no final das colheitas, passando alguns dias retornavam e todas as árvores e pedras ouviam seus contos embriagados. O vento trazia de muito longe o cheiro azedo de seus hálitos de cachaça, de seus corpos suados, impregnados com o cheiro doce das mulheres de peles claras. E nós corríamos felizes para assarmos carne, fazermos pão e banhar nossos corpos com água de alecrim, depois íamos esperá-los na cancela, farejando o vento para sentir a proximidade.
A velha calou. Sombras dançavam encharcadas de luz sob seus olhos enrugados e lacrimejantes. A moça sentada sobre o pilão negro de fuligem e uso se movimentou ajeitando as pernas dormentes há tanto encolhidas. Estava cansada das longas conversas noturnas da avó e fugia aguçando os ouvidos para escutar as canções da noite feitas de coaxos e zumbidos de vento.
- As almas dos mortos se alegram nas noites de ventos... - Recomeçou a velha. – Flutuam mais rápido. Antigamente elas passavam por aqui, ajudando-me nas madrugadas de fornalhas quando os pães e bolos eram assados. Batiam os ovos e amassavam a massa branca que grudavam em seus dedos transparentes como luvas moles. Eu ria e chamava o homem e as crianças para verem. Eles nunca chegavam a tempo, por isso me chamavam de devaneadora, para não dizer louca. Não me importava como ainda não me importo. Gosto das almas, da leveza de seus abraços, do cheiro de cravo que seus espectros trazem... Você já viu alma, minha neta?
- Virgem-Maria, nunca! – Diz a moça e se benze.
- Pena... é uma pena. Você ia gostar, de certo que ia. Se pudesse vê-las em seus bailados sem formas, tangidas pelos ventos, parecendo pássaros sem asas, tal esse rapaz que está ao seu lado.
- Que rapaz, vó? Aqui não tem mais ninguém, se não eu e a senhora.
- Engano seu, minha neta. Em todos os lugares estão às almas dos mortos com seus corpos vazios... E esse rapaz é antigo, sorri bonito e cheira as ervas verdes da campina no inverno. Diz que gosta de você!
A moça olhou os lados com receio. Os ardentes mundos imaginários da avó perturbavam-na como as estórias contadas em voz baixa, hipnótica, que parecia levá-la a um estado de profunda letargia. Levantou-se em busca do caneco de alumínio que mergulhou no pote d’ água, buraco fundo sem luz, e retornou com o líquido escorrendo na mão e no copo refletindo os flocos da claridade do fogo. Bebeu sem pressa. O tempo ali naquela cozinha não tinha tempo, não passava. Tanto podia ser hoje como amanhã ou mil anos no passado ou futuro. Tudo continuaria com aquele silêncio abissal como se apenas ela, a avó e o fogo existissem no mundo.
- Ele pede-me para lhe falar.
         - Quem, vó?
        - O rapaz que sorri com hálito de ervas. Diz que vocês se conhecem desde muito, mas você não lembra, foi em outro mundo. Pede que você não esqueça a promessa de voltar para ele.
A velha olhava para a solteira da porta com olhos de nada ver. Inquieta, a moça estremeceu, procurando também divisar vultos ou qualquer contorno que lhe lembrasse tal coisa, entre as sombras estranhas que habitam a parede manchada de gorduras e tempo.
- Diz para não ter medo. Em breve, estarão juntos.
- Vó pare de falar semelhantes besteiras! A senhora me assusta!
- Não sou eu, minha neta, é ele. – O dedo descarnado, trêmulo, da velha, apontou para a parede manchada junto à porta, que dava para o quintal.
A moça sentiu um sopro quente perto da face, como um beijo leve e cheiro de ervas frescas. Benzeu-se novamente fazendo uma oração rápida e ficou olhando a parede com olhos de medo. O foco apagou-se lentamente, deixando um rastro vermelho pelo reflexo das brasas ardentes.
- Vamos dormir, vó. Amanhã cedo tenho que lavar roupas no rio.
As águas estavam tranquilas, quase transparentes, naquela manhã. A moça lavava a roupa e cheirava o vento com gosto de terra e mato. Sombrio, o dia engravidava nuvens que arrebentariam em chuvas no final da tarde. Se quisesse poderia escutar a respiração do mundo. Lembra-se da avó e suas estórias. Viviam as duas sozinhas deste a morte da mãe, filha da velha, e a fuga do pai para lugar desconhecido. Faziam doces para sobreviver e moravam na casa antiga com salas, janelas enormes e porão cheio de ratos-do-mato e rãs. A parte do lado e a parte da frente estavam tomadas de heras crescidas, deixando-a com aparência de abandonada.
O mormaço do meio dia sem sol, encoberto pelas cortinas cinza de nuvens pesadas, impregnou-lhe o corpo de calor. Tirou a roupa, afundando no ventre gelado do rio. Nadou sentindo a vida correr, dona de seus desejos ou indiferenças, pensando nas profundidades dessa vida, ainda que curta, mas envelhecida pelos anos de solidão e histórias da avó.
Mergulhou fundo. Gostava de abrir os olhos dentro da água, enxergar peixes minúsculos que fugiam em cardumes velozes, pedras redondas, macias, sem definidas. Mergulhava, enroscando-se nas plantas aquáticas que lhe cobriam o corpo de carícias verdes. Sentiu, num mergulho mais profundo, algo lhe puxando os cabelos levemente como um afago envolvente. Abriu os olhos sob o lençol d’ água que deformava o fundo do rio e viu o rosto sorridente de um rapaz que lhe soltava beijos e acenos. Quis retornar à superfície. Não conseguiu e engoliu água de tanto susto e medo. Submergiu sufocada no abraço do rapaz que lhe segurava o corpo, senhor de seus movimentos, sua vida.
Naquela tarde, a avó esperou-a em vão. Alta noite viu a neta passar entre as copas das árvores, brincando com o rapaz que cheirava a ervas do campo. Acenaram felizes para a velha e sumiram entre as poucas nuvens de um céu de verão, misturando-se as estrelas.
(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

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