terça-feira, 31 de janeiro de 2012

MEU AMOR VIRTUAL


                                                             
A madrugada entrava suave pela janela aberta e ela parada em frente ao computador há horas, não prestava atenção ao tempo. Perdida entre divagações, sonhos, desejos e fantasias, teclava com seu amante virtual. Conheceram-se há alguns meses...Isto é, se conheceram virtualmente. Nunca se viram, nunca se tocaram, não sabia do cheiro ou do gosto um do outro, apenas as palavras construíam a paixão.
Uma paixão que a deixava acordada imaginando-o. Era assim que ela queria. Pelo menos dessa forma eles se perpetuariam na galeria da perfeição. Mas também isso era uma violência com o seu corpo, que estava faminto por uma boa noite de amor. É tão difícil confessar isso. Ela não falava disso com ele, afinal expor as nossas feridas para outros é mostrar nossas fragilidades, e não gostava de ser frágil.
Ao mesmo tempo pensava: “mas os outros também as têm, ou poderão tê-las”. Mas não queria se expor, se mostrar, carne ardente, ferida de tempo e solidão. Não somos o que somos e sim o que pensamos que somos, dizia para si mesma. Essa possibilidade de existirmos apenas em nossas crenças doía sua sensibilidade. Queria certezas que não existia. Afinal, ser alguém exigia uma identidade constante, cheias de regras socialmente impostas e ela não queria pagar este preço. Tinha cinquenta anos, morava sozinha, era funcionária publica concursada – e muito se orgulhava disso. “Entrei pela porta da frente!” – Repetia constantemente para os colegas terceirizados, vagas conseguidas por algum politico.
Por distração começou a frequentar as redes de relacionamento, página feita com uma foto de 20 anos atrás, falando de coisas que nem de longe falaria no seu dia a dia. Quando o conheceu seu mundo virou. Da segura rotina passou a ansiar pela noite, perdidas entre teclas e luzes do monitor do computador, horas que lhe custava um acordar saudável. Afinal, dormia pouco para poder ter mais tempo com ele.
Aqueles momentos passaram a serem os mais significativos de sua vida. Ele não a enganou, era casado, pai de três filhos adultos e vivia muito bem com a mulher. Ela era o seu amor virtual, era especial, inatingível, princesa cibernética encantada. Como poeta menestrel ele ansiava por uma musa, pela inspiração perfeita que só existe nos sonhos de um homem de meia idade.  
Naquele domingo ficaram se comunicando até quase o amanhecer. A mulher dele estava viajando e eles tinham maior liberdade. O sexo virtual foi divino. Ela se masturbou entre palavras nunca pronunciadas na vida real. Cinco horas da manhã, o sol quase nascendo lhe encontrou confusa, reflexiva, alma atormentada. Passava as mãos pelos olhos tentando se reconhecer. Tomou banho, vestiu uma camisola leve e foi para a cama. Teria o dia inteiro para procurar algum ponto seguro nesse novo momento que vivia. Não havia. Teria que olhar a cara desse outro eu que acordou passional, felino, selvagem. E assustador! Cinquenta anos tentando se esconder, fechar seus desejos que poderiam corromper sua dignidade.
E agora este caso virtual arrancava suas máscaras. Gostaria de ter outra identidade? Perguntava-se quase febril. Ela já estava em outra identidade. Como seria este outro alguém desconhecido que mora dentro dela? Seus questionamentos continuavam e ela não conseguia dormir. Será que a sordidez me atrair a este ponto? Serei vítima ou algoz nesta nova vida que tenho? Como viverei com essa duplicidade? De dia seria a funcionária pacata, senhora quase ingênua. À noite a fêmea fatal, mulher capaz de matar ou morrer de paixão. Onde estava seu verdadeiro eu entre essas duas personagens?
Quase em pânico resolveu que só teria um jeito de não enlouquecer: conhecer João Paulo, o amante virtual. Diante da agonia de ser um camaleão de múltiplas faces, conhece-lo seria uma maneira de encontrar o equilíbrio. Mas como fazer isso? Não tinha seu endereço, contato, nada. Apenas um e-mail e a página na internet. Pela sua sobrevivência teria que conseguir maiores informações.
Pela conveniência, João Paulo havia lhe dito que jamais se conheceriam. Ao se conhecerem o encanto se desfaria e eles seriam simples mortais, amantes que brigam enlaçados em pensamentos egoístas, cheio de sentimentos mesquinhos e pobres. Por sua vontade, não. Ela queria mesmo era um amor de verdade, olho no olho, mãos dadas, cinema das 23 horas, assim como as amigas. Saudades dos tempos passados, juvenis, onde namorava agarradinho, sentindo o coração do outro. Por que a vida só lhe mandou isso?  
Mas também sentia medo do sonho se transformar em pesadelo ao se transpor em realidade. Não gostava da realidade... ou melhor, da sua realidade, onde seus gritos de solidão eram ouvidos apenas pelo silêncio. Um silêncio que ensurdecia. Por isso, fugia da sua vida para tentar viver outra vida. Uma vida virtual, outra realidade que a atirava numa condição marginal, perdida numa imaginação feita de enquadramentos e sonhos.
Naquela manha acordou decidida. “A única razão deixar este homem na minha vida é tê-lo como um espelho, onde eu possa contemplar meus anseios do passado.”. Com este pensamento vestiu uma blusa rosa e uma calça branca e partiu meio sem rumo. Queria encontrá-lo, mas onde? Lembrou-se dele ter lhe dito que trabalhava num prédio no centro da cidade. Rumou para lá guardando na memoria o rosto dele preso no retrato da sua página social.
A memória fazia círculos na sua cabeça brincando de tiro ao alvo, tentando focar nos detalhes que eles conversavam. Era advogado, meia idade, cabelo quase branco, gostava de comer salada de atum com macarrão... Desceu do ônibus perto do prédio em que ele trabalhava. Caminhou de cabeça baixa pensando que agora não dava mais para retornar. Depois de marcado um encontro consigo mesma, não tem volta. Entrou no prédio e esperou. A cada porta de elevador que abria procurava o rosto dele, congelado na memória das fotos que ele lhe mandava.
Depois de quase 3 horas encontrou dois olhos frios por trás de uns óculos de aros pretos. Era ele, tinha certeza. Surpresa, aborrecimento, incômodo... não saberia dizer quais os sentimentos que lia naqueles olhos. Mas isso não lhe importava. Queria vê-lo, sentir que ele existia de verdade e só!
Chegou bem perto e disse: “sou eu!”. Ele a olhou profundamente, bem dentro de seus olhos, ao ponto dela se ver refletida nas lentes dos óculos dele, e disse: “Eu sei.”. Ela esperou pelo beijo, um abraço, um toque qualquer. Mas ele simplesmente disse: “Nunca mais me procure”. E se foi.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

A PRINCESA DE ÉBOLI – MOMENTOS FINAIS

Pastrana, janeiro de 1590, reinado de Felipe II da Espanha.
Meu querido Antônio,
Estou sendo encerrada na torre do meu palácio em Pastrana. Escrevo e ouço o barulho dos guardas reais fechando à porta que dá acesso a escada do salão principal. Estou presa na ala da torre. Pouco a pouco uma escuridão lúgrume e sufocante toma conta do recinto onde estou. É apavorante. Escrevo para manter minha sanidade, para não esquecer quem sou!
Sou Ana de Mendoza - herdeira única de uma das mais prestigiadas e poderosas casas da nobreza espanhola! Sou a princesa de Eboli do condado de Pastrana. No correr desta noite, neste quarto vazio, acompanhada de minha filha mais nova e a saudade de ti, sinto um torpor na alma e o enrugar da idade, que começa a pesar no meu corpo. As horas correm impiedosas, e não me dão mais o tempo. Penso apenas em morrer.
Sinto falta principalmente dos teus olhos, meu amado Antônio. Dizem os cabalistas que para cada tipo de erro há uma fórmula particular para reparar tal erro. A minha formula foi te deixar livre para seguir com tua vida. Libertando-te, libertei minha alma porque tu a levastes contigo. A liberdade de opção me foi negada, presa injustamente, sinto-me feliz em saber que tu conseguiste escapar daquela fétida prisão e dos malditos inquisidores.
Conseguirei ficar viva se souber que me amas. Acreditarei que ainda existe vida se me escreveres dizendo do seu amor por mim! Acreditarei ainda mais, se em suas cartas me falares da tua saudade, da falta que sentes de nossas noites de entrega. Se tu, meu Antônio, me escreveres me sentirei contigo. Sentirei e compartilharei da tua tristeza, sentindo-a no meu próprio corpo. Se me contares das tuas dores, eu saberei que ainda estais comigo e o peso dessa prisão será menor.
Pensar em ti liberta-me. Sinto que meus pensamentos tem uma força que acalenta meu coração, invocando lembranças de um passado recente, cheio de emoções. Eles possuem a capacidade de cruzarem os mares, atravessarem as montanhas, correrem pelas estradas em tua procura.
Pensar em ti faz o tempo voltar para quando o tempo não tinha tempo e éramos só nós dois. E faz tão pouco tempo que ainda sinto suas mãos tocando meu corpo cheias de desejos. Quando descobriram nosso amor, o tempo deixou de ser tempo e passou a ser saudade, restaram apenas às lembranças de nossos encontros, conversas sem fim permeadas de beijos e paixão.
Escrevendo-te agora, embora sabendo que jamais receberá esta carta, sinto o tempo dar saltos entre o passado feliz e o medo do futuro. Já não tenho esperanças, sei que morrerei nessa torre. Por isso, deixo que o tempo passe alimentando minhas ilusões e meus sonhos de tê-lo novamente comigo, e assim, poder novamente gargalhar diante das tuas divertidas palavras que só os amantes compreendem. Tenho pressa em escrever para não deixar que o tempo apague minha memoria e tudo que vivemos perca o sentido.
Acordo e sinto o cheiro úmido do nevoeiro lá fora, embora aqui dentro tudo seja tão escuro e abafado. Ouço o despertar do dia pouco a pouco no povoado. Pastrana amanhece. Todos os sons que entram neste quarto faz-me perceber que meu tempo estar findando porque as horas não passam para quem vive no passado. Enrosco-me nas cobertas da cama, que um dia já recebeu meu prazer, sentindo-me segura e isso é tão raro. Estas quatro paredes que me aprisionam também me protegem.
Pastrana sempre foi o meu lugar encantado, o lugar onde serei a eterna princesa, agora encantada e presa entre paredes que um dia foi meu lar. Paredes onde meus segredos foram guardados e revelados. Pastrana me abriga, me protege e me aprisiona. Meu palácio, minha prisão. Paredes que me escondem do mundo e retira meus sonhos que se perderam quando tu foste embora.
Já escrevi dezenas de cartas ao Rei, pedindo perdão por crimes que não cometi. Sonho com este perdão onde poderei me reunir a ti. Mas tudo é em vão. Sei que não terei perdão, porque meu maior crime foi me apaixonar por ti. Este crime meu rei jamais me perdoará, pois assim, o trai como mulher. Trair o amor de um rei é muito mais mortal que uma traição politica. Mas o que posso fazer? Meu amor por ti foi maior que meu senso de praticidade. Como amante do Rei eu tive poderes e privilégios, como tua amante apenas a dor, a humilhação e a prisão. Mas mesmo assim, em nenhum momento me arrependo de ter sido tua!
Devo parar de escrever agora. Meus olhos ardem de choro e escuridão. O silencio lá fora é total. Os guardas acabaram de cimentar a parede, agora meu palácio realmente se tornou uma prisão. Agora sei que minha vida acabou.
NOTA:
Ana de Mendoza (1540-1592), a princesa de Éboli, foi uma mulher dona de uma beleza e inteligência que suscitaram reações apaixonadas na corte de Felipe II, que foram da atração ao repúdio. Usava uma pala no olho direito, cego acidentalmente ainda criança e foi casada com o português Ruy Gomes da Silva (1529-1573), príncipe de Éboli e duque de Pastrana. Após ficar viúva, foi amante do rei, como também de seu astuto secretário Antônio Pérez (1540-1611), e por isso, se viu implicada numa trama política e sentimental que a levou a prisão e morte em seu próprio palácio em 1591. Antonio Pérez fugiu e se salvou, morrendo muitos anos depois na França.

domingo, 24 de abril de 2011

A VIDENTE

     
      A mosca voava em volta do seu rosto envelhecido. Vez por outra espantava o impertinente inseto com a mão encardida pela velhice, e voltava a olhar a fotografia quase apagada pelo tempo, conversando em murmúrios com ela mesma. Só desviava a vista da foto quando passava alguém para sentar-se numa das mesas do pequeno bar. Ninguém sabia ao certo seu nome, a conhecíamos por “Vidente”, e parecia que realmente tinha alguns poderes quando espalhava as velhas cartas desbotadas de um baralho que ela chamava de “tarô”.
        Seu Agenor, o dono do bar, não reclamava da presença silenciosa e estranha daquela mulher. Parecia até gostar. Dizia que atraia freguês. Eu nunca gostei dela, cheirava a tristeza e dor. Das poucas vezes que conversei com ela me falou de uma família bem de vida e me mostrou a tal foto. Vi um casal elegante e jovem com duas crianças alegres. A mulher resplandecia numa orgulhosa felicidade enquanto recebia o olhar apaixonado do marido e segurava possessivamente os ombros das crianças. Perguntei quem eram e a Vidente me respondeu ser ela e a família. Ri alto, olhando-a de baixo até em cima, e falei qualquer coisa como “e onde estão esses príncipes?”. O olhar de dor e solidão que ela me devolveu doeu minha alma. Uma discreta lágrima correu de seus olhos e falou baixinho quase não me deixando escutá-la: “se foram...”.
         Nunca soube se era real ou não a história que tempos depois me contaram sobre a Vidente, o certo é que passei a evitá-la como se sua dor fosse contagiante. Eu era jovem, carregada de vida e sonhos. A tristeza que saia de cada poro daquela mulher me enojava. Era como se eu recusasse a acreditar que a vida fosse tão cruel. Às vezes, quando eu chegava mais cedo no bar do seu Agenor para tomar um choppinho esperando os colegas do banco, ela me abordava querendo jogar as cartas para ver minha vida. Nunca aceitei, apesar de algumas amigas terem me dito que a velha era o máximo.
        Quando chego perto o rosto bonito da mulher da foto confunde-se com o rosto enrugado e triste da Vidente, e isso me embrulha o estômago. Eu quero sair correndo, esquecer a história dramática desse miserável ser. Pedi muitas vezes ao seu Agenor para não deixar a velha entrar no bar, mas por piedade ou ganância o maldito nunca me atendeu. Os amigos não entendem minha implicância com a “mulher das cartas”. Talvez nem eu. Apesar de no íntimo achar que aquela figura sempre vestida de preto, com os cabelos crespos despenteados, cheirando a dor e suor me incomode por me lembrar da minha própria solidão. Acho que tenho medo de ficar como ela, vagando pelos bares mostrando a dor de minha alma. Acho que eu já faço isso de alguma forma...
        
          A velha olhava curiosa para a moça de vestido colorido. Por que será que nunca aceitou jogar o tarô? Perguntava-se vez por outra. Apesar de saber que a incomodava, sentia uma estranha ligação com a moça. Gostava de vê-la ri alegre, os lábios sempre pintados de vermelho vivo moldurava uns dentes tão brancos e brilhantes que pareciam artificiais! Ficava horas olhando a moça. Vestia-se sempre com sensualidade, roupas coladas mostrado as carnes duras de um corpo jovem. Talvez tivesse trinta anos no máximo. Trinta anos... Fazia quase este tempo que tudo aconteceu.
      Tinha trinta e cinco anos quando toda a sua vida mudou bruscamente. Morava numa casa grande, bem decorada, muitos livros, muitos quadros de pintores conhecidos. Gostava de receber amigos em longas noites de festas onde o riso misturava-se ao sabor doce do vinho e o cheiro suave dos perfumes caros. Era bonita, inteligente e bem casada, uma trilogia que os deuses não perdoam. Exalava sensualidade, adorava se vestir para mostrar o corpo bem contornado, de carnes macias e brancas. Gostava de ver o olhar sedento dos homens ao seu redor embora fosse muito fiel.
     O marido a adorava e lhe cuidava como um bibelô raro. Era bom receber todas as atenções, o carinho, dava-lhe a sensação de ser superior ao mundo. Os filhos, dois meninos levados e vivos às vezes lhe enervavam, mas os amava com a força das entranhas de uma mãe possessiva. Por vezes se pegava pensando em sua vida era tão perfeita que custava a acreditar que existisse a dor.
      Entre seus passatempos prediletos estava o jogo do tarô, estudava tão seriamente que o marido brincava dizendo que ela iria se transformar numa cartomante. Sentia um aperto estranho quando ele dizia isso, parecia tão profético! Mas adorava aquele jogo secular, com suas cartas tão coloridas e misteriosas, simbólicas e arrogantes. Pareciam guardar todos os segredos do mundo. O jogo lhe fascinava pela precisão com que revelava todos os segredos, lhe dando a sensação de poder. As amigas viviam lhe pedindo para jogar para elas. Sabia de tudo de todos do grupo, era uma espécie de guru e isso lhe dava muito prazer. Não só pelo poder de manusear vidas como também para se comparar com aquelas vidinhas tão monótonas ou problemáticas.
       Nesses momentos sentia-se como uma eleita, uma privilegiada pelo destino por ter uma vida tranqüila e feliz. Obviamente que tinha alguns problemas, mas tudo era tão leve, tão suave que não chegava a tirar o brilho adocicado da vida. Hoje sabe, e talvez sempre soubesse que o destino apenas lhe deu um oásis antes da grande travessia ao escaldante e solitário deserto no que se transformou sua existência.
        Tinha trinta e cinco anos, uma casa bonita, um casamento perfeito, dois filhos adoráveis, juventude, inteligência, beleza - perfeição demais para essa vida. Ela não passaria despercebida pelas três Parcas - as deusas do destino.                                  
        Eram umas cinco horas da tarde quando conheceu Jance. Apressada, andava quase correndo pelas fileiras das prateleiras do supermercado. Estava atrasadíssima no preparo do jantar que ia oferecer a alguns amigos importantes do marido.
- Este molho ficará uma delícia na carne que você vai preparar.
              Olhou curiosa para o dono daquela voz rouca. Era um homem interessante, tinha um olhar meio cínico e um sorriso misterioso.                
              - Como sabe que vou fazer carne hoje?
              - Simples, lhe vi comprando na sessão de carnes e agora está na sessão de condimentos...
              Pegou o vidro de molho pronto que ele lhe oferecia. Leu as instruções e olhou para o homem maliciosamente.
               - Por acaso o senhor é representante desse produto?
               - Não, infelizmente não. Mas o adoro. Meu nome é Jance e sou gerente comercial de uma transportadora.
              - Ah, sua profissão tem tudo haver com seus gostos culinários! – Respondi rindo.

        Agradeceu e deu as costas rapidamente. De repente sentiu raiva daquele homem intrometido que deixou seu coração pulsando forte e sua respiração ofegante. A voz rouca ainda vibrava no seu ouvido. Olhou o vidro de molho no carrinho de compras e como para se vingar, devolveu-o numa prateleira qualquer.
          - Mas eu juro que o molho é uma delicia!
          - O senhor está me seguindo?
          - Não! De maneira nenhuma. É apenas coincidência estarmos nas mesmas sessões e...
          Deixou-o falando sozinho e seguiu apressada para o caixa. O sangue corria tão depressa que o escutava latejando nas têmporas.
          Naquela noite estava nervosa. Conversava alto, num tom de voz esgaçado. Deixou cair o garfo por duas vezes, o marido a olhava em tom de censura e tiveram uma briga quando todos saíram. Chorou madrugada adentro e pela primeira vez em muitos anos se sentiu triste e igual a todos os mortais.    
          Voltou ao mesmo supermercado várias vezes naquela semana. Buscava algo que  não sabia direito o que era, ou sabia mas não ousava pensar. O encontrou muitos dias depois. Ele estava novamente na sessão de condimentos. Olhou de soslaio as mãos morenas e longas do homem que segurava um vidro de ervas finas. Desta vez foi ela quem se aproximou.
           - Realmente o senhor gosta muito de cozinha não?
           - É o meu hobby. E você, o que gosta de fazer? - ele respondeu e perguntou tão naturalmente como se a esperasse há tempos. Ou como se já se conhecessem e fossem velhos amigos.
          Almoçaram juntos e conversaram sobre tudo. Tinham muito em comum. Ele também era místico, adorava filosofia oriental e sentia uma grande curiosidade sobre o tarô.
         - Não se sabe quem inventou o tarô. Talvez venha do antigo Egito ou de uma cultura ainda mais antiga, não sei. O certo é que é um jogo intrigante. Parece que todas as barreiras do tempo e do espaço são derrubadas quando se está em frente às cartas. De repente é como se o futuro não passasse de uma projeção da mente captada pelas cartas...
        - E será que o futuro não é apenas isso mesmo? – Perguntou ele, num tom brincalhão, meio implicante.
        - Não sei... seria simples demais. Fico assustada só em pensar que posso influenciar meu futuro com minha mente.
        - E por quê?
        - Porque então Deus deixaria de existir! Não é ele quem determina a vida?
        - Não o meu Deus! – Respondeu ele de forma segura. - Acredito que a vida é muito mais do que um jogo de xadrez de Deus com a humanidade. Acho que Deus é tudo que me rodeia. É minha mente, meu corpo, minha alma.
      Poderia ficar por horas ouvindo-o falar. Era tão simples e profundo ao mesmo tempo. E assim viraram amantes. Não sentia culpa. Seu amor por Jance permitia tudo, até mesmo trair o marido. Todos lhe elogiavam a vivacidade e a beleza, era como se a felicidade, antes artificial, lhe estampasse a alma. O problema começou quando a situação começou a fugir do controle. Estava tão apaixonada que a família, os amigos, a vida leve e suave já não lhe importava. Queria apenas o cheiro, o gosto do corpo de Jance, o beijo onde a saliva adocicada entrava em sua boca misturando-se a sua própria saliva.
       Uma noite, voltando de mais um encontro com Jance, o marido disse-lhe friamente que já sabia de tudo e que ela teria uma surpresa. Perguntou ansiosa sobre o que ele falava, não respondeu. Trancou-se no gabinete de trabalho e por mais que ela gritasse perguntando o que ia fazer não obteve resposta.
        Naquela manhã, quando levantou e perguntou pelos filhos, a empregada respondeu que haviam saído com o pai muito cedo. Um frio subiu espinha à cima. Será que havia saído de casa e levado às crianças junto? Correu ao telefone querendo ouvir Jance, sua voz lhe acalmava, ele era sempre tão sensato. O tilintar da campainha do telefone chamando do outro lado só aumentava sua ansiedade. Sabia que Jance estava em casa, ele nunca saía antes das dez horas. Ligou uma, duas, três, mais de dez vezes e ninguém atendeu. Ligou para seu celular e o mesmo silêncio. Pegou então, as cartas do tarô, embaralho-as pensando na situação. Tirou três cartas: a Lua, o Enforcado e a Torre. Suava frio, sabia que a situação era difícil. Respirou fundo e retirou outra carta - a Morte. Teve vontade de gritar. Jogou as cartas no chão e saiu correndo.
       Nunca esqueceria a cena que viu quando chegou ao apartamento de Jance. Sobre o sofá vermelho, onde tantas vezes se amaram, o corpo de Jance sangrava, mas já sem vida. No corredor, também mortos, os dois filhos ainda traziam no rosto a expressão de espanto e terror. No quarto, agarrado a uma blusa sua, que se esquecera da última vez que lá esteve, o marido também jazia sem vida. Ao lado do revolver, um bilhete: “Acabou. Para quem trai não há perdão. Você nunca terá nem ele, nem a mim, nem uma família”.
       O que se passou depois não lembrava. Estas foram às últimas cenas do seu passado. Depois, sua vida só teve o presente, o eterno e frio presente. Como companhia apenas as cartas do tarô e as fétidas mesas dos bares do centro da cidade. Voltou o olhar para a moça, ela parecia tão feliz segurando as mãos morenas e longas de um homem que a olhava enternecido. Conhecia aquele olhar e o calor de umas mãos como aquelas.

sábado, 23 de abril de 2011

MEDO DA SOLIDÃO



Ela tocava seu rosto sem acreditar no que via. Rugas suaves, poros dilatados, pele áspera. O espelho parecia um maldito quadro da verdade. Pegou algumas fotografias antigas, onde se retratava alegre, brejeira, fazendo poses sensuais e brincalhonas. Como era estranha a velhice. Não fazia muito era jovem, bonita, desejada. E agora estava perdendo seu poder de escolha. Se antes escolhia seus homens, agora teria que mendigar atenção. Estava ficando invisível para os homens.

Tirou toda a roupa e viu um corpo flácido, cheio de celulites que não parecia em nada com seu antigo corpo, ou pelo menos com o corpo que guardava na memória. Sentiu um frio estranho, de medo e questionamentos. Como era ser uma velha? Como será viver sem chamar atenção dos homens? Nunca aprendera a se amar de verdade. Sempre medira seu valor através do olhar de admiração e desejo dos homens e de inveja das mulheres. E o tempo correu rápido, sem notar estava na meia-idade, com quarenta e cinco anos, dez de descasada e um filho quase adulto.

Teve muitos amores depois do casamento. Alguns importantes, outros nem tanto. Mas todos bons. Alimentava-se de amor como borboletas vagando entre cores e néctar. A qualidade nunca foi importante, o que queria mesmo era mostrar ao mundo que não estava só. Solidão significava abandono, rejeição, e isso não suportava. Nunca teve uma profissão, primeiro porque casou cedo, quase uma adolescente, e o marido não queria vê-la fora de casa. Depois, porque a pensão do ex-marido lhe permitia viver confortavelmente. Uma pensão generosa, fruto talvez do arrependimento por tê-la abandonado pela balconista de peito grandes da sua loja de ferragens. Mas isso era coisa do passado, que não tinha mais sentido ficar lembrando. Na época, quase morreu de dor pela traição do marido, depois ficou até feliz por pode deitar-se com qualquer um que lhe agradasse.

No momento vivia uma relação com um homem bem mais velho e casado. Não tinha preconceitos. Se uma vagabunda qualquer lhe roubou o marido, por que ter vergonha de namorar o marido de outra? Queria mesmo era ter um corpo quente para esquentar o seu e um nome para falar para as amigas. Mauro, o namorado, era gordo e ciumento. Visitava-lhe dois dias na semana, e lhe trazia chocolates ou pequenos presentes, uma correntinha dourada, uma blusa, um brinco. Mas adorava mesmo era lhe dar chocolates. E ela já estava até ficando parecida com ele: gorda e flácida. Será que era de propósito? Não importava. Gostava muito de comer os chocolates, e os devorava em minutos.

Ela era assim mesmo, moldava-se aos homens, sem importa-se com nada. Nunca dizia não. Achava que se negasse algo perderia seu homem. Sua avó, sua mãe, suas tias, todas foram passivas, e ela também o era. A mãe casara também cedo, com um viuvo trinta anos mais velho. Viveu com medo desse marido autoritário e velho, que tinha muito ciúmes e gritava por qualquer coisa. Quando o pai morreu, ela era uma adolescente tímida e bonita, que casou aos dezesseis anos com o filho do dono da mercearia da esquina. Foi fiel, apesar das muitas tentações a sua volta, durante todo seu casamento. Não entendeu nunca porque o marido havia lhe deixado. Sempre fora tão companheira, tão servil. Até propôs ignorar o caso do marido, para ele não sair de casa. O problema foi que a moça de peitos grandes não aceitou ser a outra, e ele se foi. Daí por diante procurou desesperadamente um substituto para o ex-marido, encontrando somente um bando de homens famintos por sexo e egoístas.

Está tão absorvida nos seus pensamentos e na carícia gostosa do vento que entra pela janela aberta e bate suave no seu corpo, que não nota quando Mauro entra na sala e fica surpreso ao vê-la nua, no meio das roupas espalhadas, cremes e espelhos de tamanhos diversos.

- Que diabos é isso? Endoidou de vez, é?! - pergunta quase gritando. Ela apenas olha o homem suado, nervoso, com a enorme barriga escorrendo das calças e da camisa desalinhada. Tem vontade de ri da figura desajeitada de Mauro, enquanto pensa pela milésima vez, o que fazia aquele homem na sua vida.
- Estou lhe esperando, amor! Já jantou?

(do livro “As Várias Maneiras de Amar” – contos - 1999, Fortaleza/Ce)

TRAIÇÃO, DIVINA TRAIÇÃO (conto)


A noite está escura, gelada e dói no meu peito. É uma dor suave que escorrega pela minha alma como uma carícia de mãos frias. Hoje eu o vi com ela. Deve ser uns quinze anos mais nova que eu e o que mais doeu foi me reconhecer naquele sorriso fácil de mulher jovem. Eu era como ela, ardente, sensual, viva. Onde será que sepultei minha juventude? Nesse casamento de quase vinte anos?

Hoje eu o vi com ela e pensei nas quantas bocas deixei de beijar, nos quantos corpos que deixei de tocar ou nas milhares de fantasias que deixei de realizar com os muitos homens que desejei. Estranho o que se faz por medo de perder. Eu o amava e não queria acabar com o meu casamento! Quanta ironia. Deixei que meu corpo ficasse flácido e meu brilho apagasse para não ceder as tantas tentações que o mundo me oferecia. Eu vi seus olhos de desejos, os mesmos olhos que me lambiam antes da sua língua... Que agora lambe a moça jovem. Como dói! Dói e eu tento suavizar intelectualizando: Ah, mas é comigo que ele dorme todas as noites... Dorme sonhando com os seios brancos e sedosos da moça jovem! Quantas noites deve ter me acariciado pensando na moça e no seu corpo que cheira a sexo. E nas vezes que descarregou seu sêmen nas minhas entranhas desejando estar dentro da moça... Eu o odeio! E odeio mais a mim mesma por ter me privado da vida.

As horas correm soltas, voando como o vento que gela meu corpo. Angustia que aperta o peito e não sei o que fazer com ela. Que rumo dar a minha vida? Eles pareciam tão felizes... Lembrava a nós mesmos, anos atrás. Ele me acariciava e dizia que eu era bonita, que me amava. Será que me procura novamente numa mulher mais jovem? A gente muda tanto quando envelhece. Antes eu era alegre, risonha. Quanto tempo que não rio escancarado? Riso que vem das entranhas, riso de verdade.

- Ainda acordada, meu bem? O que você faz sentada no escuro? - Tão absorvida em meus pensamentos que nem o vi entrar. A voz dele me assusta. Joga as chaves do carro dentro do cinzeiro e fico escutando o eco do som das chaves encontrando o vidro do cinzeiro transparente, de cristal caro, presente de algum aniversário de casamento com certeza. Com o que será que ele presenteia a moça? Perfumes, jóias, sedas? Os homens são tão sem imaginação...

- O que pensa essa cabecinha linda? - Pergunta ele enquanto acaricia meus cabelos e me beija na testa. Eu queria era um beijo de língua, sufocante e ardente como os que ele deve dar na moça! Ele senta ao meu lado e ainda posso sentir o cheiro de perfume adocicado e caro, o perfume dela impregnado no seu corpo.
- Nada. Não penso em nada! Não vivo nada, não sou nada! - Ele me olha surpreso. Recolhe o abraço e se afasta.
- O que houve? Está com raiva de mim? - Pergunta irritado. E o que respondo agora? Que eu o vi com uma mulher num barzinho de beira mar? E o que aconteceria depois? Estou preparada para largar esse homem e buscar a vida e o prazer no mundo lá fora?
- Não, querido. É só um pouco de dor de cabeça. Passa logo. Quer que eu esquente o jantar? - Forço um sorriso e me levanto para não sentir o cheiro da moça no corpo dele. - Deixei frango no forno, você quer que eu esquente? - Tudo é tão banal, nossa conversa, nossa proximidade...
- Não, já jantei... com uns amigos. - Levanta-se e sai em direção ao quarto desabotoando a camisa e cantarolando música de FM. Deve ser música de motel, penso enquanto o vejo sumir no corredor escuro. O que fazer? Não sei mais viver sem esse casamento, parece emprego antigo, tenho medo de mudar e ser pior, perder a estabilidade, a segurança. Que segurança? Ele pode me largar a qualquer momento para ir viver seu prazer. E o que digo agora? Que o vi com outra? Será que vai adiantar? Ele vai negar e eu vou acreditar porque preciso acreditar.
- Amor, vem cá! - Escuto sua voz gritando do banheiro e tenho vontade de lhe mandar pra merda.
- Sim, querido? - Chego até a porta do quarto. As roupas estão jogadas no chão. Calça, camisa, cueca se amontoam. Será que ele fez assim no motel? Deixou as roupas jogadas depois de retira-las apressado e ofegante? Imagino cenas dele com a moça rolando entre desejos e sussurros, machucando ainda mais meu peito.
- Me dê uma toalha nova, sabe que odeio toalhas molhadas! - Entrego-lhe uma toalha branca. As toalhas de motel também são brancas, penso perversamente.
- Acho que vou viajar no final de semana à serviço. O diretor do banco me quer fiscalizando umas obras no interior. É uma viagem chata. Tá quente por lá... - E fica falando como que se desculpando por não me convidar. Sei que viajará com ela para alguma pousada da beira de praia, onde tostarão ao sol e farão sexo melados de areia.
- São coisas da profissão, querido. Quer que eu arrume sua mala?
- Não, pode deixar que eu mesmo arrumo.

Na certa não quer que eu veja as roupas leves que vai colocar na bolsa de viagem. Deita na cama ainda enrolado na toalha e pouco depois começa a roncar. Retiro a toalha de cima do seu corpo e penso que vejo marcas de unhas na sua barriga e coxas. Viro o rosto enquanto as lagrimas finalmente descem por meu rosto cansado. Deito-me ao seu lado sentindo seu hálito que cheira a bebida, enojada e resignada. Será mais um final de semana sozinha, brigando com os filhos adolescentes e limpando armários e gavetas.

(do livro “As Várias Maneiras de Amar” – contos - 1999, Fortaleza/Ce)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

OS OLHOS DA SERPENTE


Olhou a forma que se banhava no mar escuro. Golfinho branco em pulos acrobáticos, pensou. Mas quando a forma saiu da água torcendo longos cabelos, percebeu que era uma mulher. Caminhava devagar, coxa esfregando uma na outra sensualmente, penteando fios de cabelos em desalinho com os dedos. Meio encoberta pelas sombras fosforescentes da lua deitou-se na areia clara e começou a mexer o corpo de tal maneira que parecia uma roldana em movimentos circulares, numa estranha dança horizontal.

Procurou permanecer o mais escondido possível, evitando ser percebido pela estranha mulher. Por alguns segundos, no entanto, como pressentindo algo, ela virou-se na direção das pedras onde ele se achava e seus olhos brilharam de maneira anormal com a luz do luar refletida nelas. Eram de um lilás esbranquiçado, e faiscavam como fogo. Teve medo e encolheu-se ainda mais, até sentir o corpo doer pelo desconforto da posição e a aspereza das pedras.

Com um movimento brusco, ela levantou-se e correu de volta ao mar, deixando pegadas na areia molhada. Nadou por algum tempo, mergulhando e reaparecendo logo depois. Em dada momento mergulhou e não mais veio à tona. Esperou ansioso, tenso, a misteriosa mulher, por quase meia hora. Saiu do esconderijo com a certeza de que ela não mais retornaria. Um estranho aperto na alma, como uma saudade amargurada, apossou-se-lhe do corpo. Queria a todo custo rever aquela mulher.

Por uma semana ficou nas pedras da praia, esperando-a. E finalmente, sete dias da primeira aparição, ela retornou. Os mesmo movimentos, gestos, um ritual ensaiando, pensou ele. E sem mais poder se conter, resolveu aproximar-se.

Saiu das pedras devagar, caminhando com suavidade para não assustá-la. Tocou-a gentilmente, temendo que fosse dissolver-se, miragem perdida na escuridão, nascida de seu inconsciente. Ela, porém, não pareceu surpresa com a sua presença. Aceitou-o calmamente como se há muito o esperasse. Não trocaram uma palavra. Amaram-se em silêncio, perdendo-se ele nos olhos lilases esbranquiçados, como se uma outra dimensão o tragasse. Ela movia-se ondulante, envolvendo-o com pernas e braços estranhamente alongados.

Quando finalmente explodiu em orgasmos, pensou: “vou partir-me em mil pedaços!”. Deixou-se ficar sobre o corpo da mulher misteriosa, sentindo a textura da pele misturada a um cheiro salino. Ela moveu-se inquieta, levantou-se, acenou-lhe e retornou as águas fundas de onde emergira.

Não mais a viu. Meses esperou em vão. Noites solitárias, olhando a imensidão escura das águas do mar. O dia geralmente encontrava-o sentado sobre as pedras ásperas, chorando quase enlouquecido, lembrando-se de uns olhos lilases esbranquiçados. Uma manhã, depois de mais uma noite de espera, um amigo lhe fez sinal. Aproximou-se e sorridente como uma criança que acabara de fazer uma travessura, para mostra-lhe algo entre as pedras. Era a forma longa, rosada de uma serpente enorme, do tamanho de uma pessoa.

- Deus, veja que olhos estranhos! – gritou o amigo.

Lilases, porém, opacos pela morte, os olhos da serpente o chocaram. Lembravam-no de outros olhos que cintilavam refletindo a luz da noite. Num impulso, agarrou o corpo pegajoso e mole do réptil e lançou-se ao mar. Abraçados afundaram nas águas mornamente envolventes.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

OS VISITANTES DA NOITE


Não compreendia o que via: homens pequenos, peludos como animais selvagens, dançando macabramente, exibindo dentes pontiagudos e órgãos sexuais erectos. Era amedrontador. Sons exóticos de tambores que pareciam pulsar do coração embalavam seu corpo e um vento frio fazia crepitar o fogo de uma faiscante fogueira perto de onde estava deitada. No alto, sobre sua cabeça, olha horrorizada para um ser terrível com duas faces diferentes, uma feminina outra masculina que se confundem em constantes mutações, por momentos monstruosamente feias, noutros angelicalmente belas. O ser lhe acaricia o corpo de forma sensual.

A cabeça rodava e ela não tinha a menor idéia de onde se encontrava ou como chegara até ali. Sentia-se sonolenta e ao mesmo tempo excitada, o calor do fogo próximo, a música, o cheiro de ervas doces queimando. Tudo eram extremamente irreal e real ao mesmo tempo.

Algumas mulheres nuas, de peles muito brancas, cheirando a ervas e suor, desenhavam alguns símbolos no seu corpo com uma substância pegajosa, que logo depois foi derramada sobre ventre e escorreram por entre suas pernas. Um arrepio profundo, de prazer, provocou-lhe gemidos enquanto os homenzinhos e mulheres de seios despidos lambiam o líquido esparramado sobre seu ventre e sexo com línguas ásperas e ágeis. Envolta na sensualidade do momento, não percebeu quando o ser de faces diferentes deitou-se sobre ela, penetrando-a com violência, arranhando e rasgando-lhe as carnes...

Os gritos da mãe chamando-a, lhe despertaram. Sentia-se cansada, deprimida, parecia mesmo que se encontrava doente de tão dolorido que o corpo estava. Havia sonhado com algo que não conseguia se lembrar, e isso a deprimia. Levantou-se devagar, apoiando-se nas paredes e entrou na cozinha. O cheiro do café fresco naseou-a.

A mãe resmungava baixinho enquanto cortava legumes e carne para o almoço. Estava velha, muito mais velha que sua idade. As mãos mais pareciam garras de tão secas e enrugadas. Sentiu pena da mãe. Moravam tão distantes da civilização, que às vezes duvidava da existência de mais pessoas no mundo, senão ela, a mãe e os dois irmãos.

- Está doente? Parece tão abatida... - Pergunta a mãe.
- Não estou me sentindo muito bem. Faz um chá de hortelã pra mim, mãe.
A velha olhou a filha com inquietação. Alguma coisa estranha havia acontecido. Podia sentir isso nas vibrações no ar, no rosto pálido da moça, no estranho nevoeiro que havia tomado conta da casa na noite passada.
- Não dormiu bem? O que houve essa noite? – Insistiu a velha.
- Não sei... não me lembro. Sonhei com qualquer coisa que não consigo lembrar. Só sei que meu corpo está doído e a cabeça parece que vai arrebentar!
- O nevoeiro... Você viu? Nunca vi nevoeiro nessa época do ano. E esses arranhões nas tuas pernas e braços?
- Não entendo. Ontem quando me deitei não havia essas marca! – Disse a moça olhando para seus braços onde vergões vermelhos, como garras apareciam de cima a baixo. A mãe benzeu-se. A voz tremeu e saiu baixa quando falou:
- De certo foi raptada por um íncubo.
- Os anjos do diabo? Deus-me acuda, mãe!
- Por via das dúvidas corra, vá se lavar. Ande, menina vai tirar essa roupa para ser queimada! Vou preparar um banho com ervas Cordão de São João, que é para você não ficar mulher do príncipe maligno!

A velha colocou para cozinhar, numa grande panela de ferro enegrecida pelos anos de uso, ervas de cheiro. Naquela região longíngua, árida, onde os ventos uivavam amedrontando os que dormiam, as coisas mais estranhas aconteciam sem levantar maiores admirações. A própria vida era estranha, com a solidão das pedras que tomavam toda a extensão do lugar, até onde os olhos e as pernas agüentassem ver ou andar.

Suspirando, ajudou a filha a banhar-se. Mais uma se tornaria mulher dos seres da noite, sabia que de pouco valeriam as ervas. Suavizariam os ferimentos, mais nada. Suspirou novamente enquanto ateava fogo nas vestes da moça e lembrava-se de antigas imagens com seres selvagens e estranhos lhe visitando em noites de nevoeiros. (do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)