domingo, 24 de abril de 2011

A VIDENTE

     
      A mosca voava em volta do seu rosto envelhecido. Vez por outra espantava o impertinente inseto com a mão encardida pela velhice, e voltava a olhar a fotografia quase apagada pelo tempo, conversando em murmúrios com ela mesma. Só desviava a vista da foto quando passava alguém para sentar-se numa das mesas do pequeno bar. Ninguém sabia ao certo seu nome, a conhecíamos por “Vidente”, e parecia que realmente tinha alguns poderes quando espalhava as velhas cartas desbotadas de um baralho que ela chamava de “tarô”.
        Seu Agenor, o dono do bar, não reclamava da presença silenciosa e estranha daquela mulher. Parecia até gostar. Dizia que atraia freguês. Eu nunca gostei dela, cheirava a tristeza e dor. Das poucas vezes que conversei com ela me falou de uma família bem de vida e me mostrou a tal foto. Vi um casal elegante e jovem com duas crianças alegres. A mulher resplandecia numa orgulhosa felicidade enquanto recebia o olhar apaixonado do marido e segurava possessivamente os ombros das crianças. Perguntei quem eram e a Vidente me respondeu ser ela e a família. Ri alto, olhando-a de baixo até em cima, e falei qualquer coisa como “e onde estão esses príncipes?”. O olhar de dor e solidão que ela me devolveu doeu minha alma. Uma discreta lágrima correu de seus olhos e falou baixinho quase não me deixando escutá-la: “se foram...”.
         Nunca soube se era real ou não a história que tempos depois me contaram sobre a Vidente, o certo é que passei a evitá-la como se sua dor fosse contagiante. Eu era jovem, carregada de vida e sonhos. A tristeza que saia de cada poro daquela mulher me enojava. Era como se eu recusasse a acreditar que a vida fosse tão cruel. Às vezes, quando eu chegava mais cedo no bar do seu Agenor para tomar um choppinho esperando os colegas do banco, ela me abordava querendo jogar as cartas para ver minha vida. Nunca aceitei, apesar de algumas amigas terem me dito que a velha era o máximo.
        Quando chego perto o rosto bonito da mulher da foto confunde-se com o rosto enrugado e triste da Vidente, e isso me embrulha o estômago. Eu quero sair correndo, esquecer a história dramática desse miserável ser. Pedi muitas vezes ao seu Agenor para não deixar a velha entrar no bar, mas por piedade ou ganância o maldito nunca me atendeu. Os amigos não entendem minha implicância com a “mulher das cartas”. Talvez nem eu. Apesar de no íntimo achar que aquela figura sempre vestida de preto, com os cabelos crespos despenteados, cheirando a dor e suor me incomode por me lembrar da minha própria solidão. Acho que tenho medo de ficar como ela, vagando pelos bares mostrando a dor de minha alma. Acho que eu já faço isso de alguma forma...
        
          A velha olhava curiosa para a moça de vestido colorido. Por que será que nunca aceitou jogar o tarô? Perguntava-se vez por outra. Apesar de saber que a incomodava, sentia uma estranha ligação com a moça. Gostava de vê-la ri alegre, os lábios sempre pintados de vermelho vivo moldurava uns dentes tão brancos e brilhantes que pareciam artificiais! Ficava horas olhando a moça. Vestia-se sempre com sensualidade, roupas coladas mostrado as carnes duras de um corpo jovem. Talvez tivesse trinta anos no máximo. Trinta anos... Fazia quase este tempo que tudo aconteceu.
      Tinha trinta e cinco anos quando toda a sua vida mudou bruscamente. Morava numa casa grande, bem decorada, muitos livros, muitos quadros de pintores conhecidos. Gostava de receber amigos em longas noites de festas onde o riso misturava-se ao sabor doce do vinho e o cheiro suave dos perfumes caros. Era bonita, inteligente e bem casada, uma trilogia que os deuses não perdoam. Exalava sensualidade, adorava se vestir para mostrar o corpo bem contornado, de carnes macias e brancas. Gostava de ver o olhar sedento dos homens ao seu redor embora fosse muito fiel.
     O marido a adorava e lhe cuidava como um bibelô raro. Era bom receber todas as atenções, o carinho, dava-lhe a sensação de ser superior ao mundo. Os filhos, dois meninos levados e vivos às vezes lhe enervavam, mas os amava com a força das entranhas de uma mãe possessiva. Por vezes se pegava pensando em sua vida era tão perfeita que custava a acreditar que existisse a dor.
      Entre seus passatempos prediletos estava o jogo do tarô, estudava tão seriamente que o marido brincava dizendo que ela iria se transformar numa cartomante. Sentia um aperto estranho quando ele dizia isso, parecia tão profético! Mas adorava aquele jogo secular, com suas cartas tão coloridas e misteriosas, simbólicas e arrogantes. Pareciam guardar todos os segredos do mundo. O jogo lhe fascinava pela precisão com que revelava todos os segredos, lhe dando a sensação de poder. As amigas viviam lhe pedindo para jogar para elas. Sabia de tudo de todos do grupo, era uma espécie de guru e isso lhe dava muito prazer. Não só pelo poder de manusear vidas como também para se comparar com aquelas vidinhas tão monótonas ou problemáticas.
       Nesses momentos sentia-se como uma eleita, uma privilegiada pelo destino por ter uma vida tranqüila e feliz. Obviamente que tinha alguns problemas, mas tudo era tão leve, tão suave que não chegava a tirar o brilho adocicado da vida. Hoje sabe, e talvez sempre soubesse que o destino apenas lhe deu um oásis antes da grande travessia ao escaldante e solitário deserto no que se transformou sua existência.
        Tinha trinta e cinco anos, uma casa bonita, um casamento perfeito, dois filhos adoráveis, juventude, inteligência, beleza - perfeição demais para essa vida. Ela não passaria despercebida pelas três Parcas - as deusas do destino.                                  
        Eram umas cinco horas da tarde quando conheceu Jance. Apressada, andava quase correndo pelas fileiras das prateleiras do supermercado. Estava atrasadíssima no preparo do jantar que ia oferecer a alguns amigos importantes do marido.
- Este molho ficará uma delícia na carne que você vai preparar.
              Olhou curiosa para o dono daquela voz rouca. Era um homem interessante, tinha um olhar meio cínico e um sorriso misterioso.                
              - Como sabe que vou fazer carne hoje?
              - Simples, lhe vi comprando na sessão de carnes e agora está na sessão de condimentos...
              Pegou o vidro de molho pronto que ele lhe oferecia. Leu as instruções e olhou para o homem maliciosamente.
               - Por acaso o senhor é representante desse produto?
               - Não, infelizmente não. Mas o adoro. Meu nome é Jance e sou gerente comercial de uma transportadora.
              - Ah, sua profissão tem tudo haver com seus gostos culinários! – Respondi rindo.

        Agradeceu e deu as costas rapidamente. De repente sentiu raiva daquele homem intrometido que deixou seu coração pulsando forte e sua respiração ofegante. A voz rouca ainda vibrava no seu ouvido. Olhou o vidro de molho no carrinho de compras e como para se vingar, devolveu-o numa prateleira qualquer.
          - Mas eu juro que o molho é uma delicia!
          - O senhor está me seguindo?
          - Não! De maneira nenhuma. É apenas coincidência estarmos nas mesmas sessões e...
          Deixou-o falando sozinho e seguiu apressada para o caixa. O sangue corria tão depressa que o escutava latejando nas têmporas.
          Naquela noite estava nervosa. Conversava alto, num tom de voz esgaçado. Deixou cair o garfo por duas vezes, o marido a olhava em tom de censura e tiveram uma briga quando todos saíram. Chorou madrugada adentro e pela primeira vez em muitos anos se sentiu triste e igual a todos os mortais.    
          Voltou ao mesmo supermercado várias vezes naquela semana. Buscava algo que  não sabia direito o que era, ou sabia mas não ousava pensar. O encontrou muitos dias depois. Ele estava novamente na sessão de condimentos. Olhou de soslaio as mãos morenas e longas do homem que segurava um vidro de ervas finas. Desta vez foi ela quem se aproximou.
           - Realmente o senhor gosta muito de cozinha não?
           - É o meu hobby. E você, o que gosta de fazer? - ele respondeu e perguntou tão naturalmente como se a esperasse há tempos. Ou como se já se conhecessem e fossem velhos amigos.
          Almoçaram juntos e conversaram sobre tudo. Tinham muito em comum. Ele também era místico, adorava filosofia oriental e sentia uma grande curiosidade sobre o tarô.
         - Não se sabe quem inventou o tarô. Talvez venha do antigo Egito ou de uma cultura ainda mais antiga, não sei. O certo é que é um jogo intrigante. Parece que todas as barreiras do tempo e do espaço são derrubadas quando se está em frente às cartas. De repente é como se o futuro não passasse de uma projeção da mente captada pelas cartas...
        - E será que o futuro não é apenas isso mesmo? – Perguntou ele, num tom brincalhão, meio implicante.
        - Não sei... seria simples demais. Fico assustada só em pensar que posso influenciar meu futuro com minha mente.
        - E por quê?
        - Porque então Deus deixaria de existir! Não é ele quem determina a vida?
        - Não o meu Deus! – Respondeu ele de forma segura. - Acredito que a vida é muito mais do que um jogo de xadrez de Deus com a humanidade. Acho que Deus é tudo que me rodeia. É minha mente, meu corpo, minha alma.
      Poderia ficar por horas ouvindo-o falar. Era tão simples e profundo ao mesmo tempo. E assim viraram amantes. Não sentia culpa. Seu amor por Jance permitia tudo, até mesmo trair o marido. Todos lhe elogiavam a vivacidade e a beleza, era como se a felicidade, antes artificial, lhe estampasse a alma. O problema começou quando a situação começou a fugir do controle. Estava tão apaixonada que a família, os amigos, a vida leve e suave já não lhe importava. Queria apenas o cheiro, o gosto do corpo de Jance, o beijo onde a saliva adocicada entrava em sua boca misturando-se a sua própria saliva.
       Uma noite, voltando de mais um encontro com Jance, o marido disse-lhe friamente que já sabia de tudo e que ela teria uma surpresa. Perguntou ansiosa sobre o que ele falava, não respondeu. Trancou-se no gabinete de trabalho e por mais que ela gritasse perguntando o que ia fazer não obteve resposta.
        Naquela manhã, quando levantou e perguntou pelos filhos, a empregada respondeu que haviam saído com o pai muito cedo. Um frio subiu espinha à cima. Será que havia saído de casa e levado às crianças junto? Correu ao telefone querendo ouvir Jance, sua voz lhe acalmava, ele era sempre tão sensato. O tilintar da campainha do telefone chamando do outro lado só aumentava sua ansiedade. Sabia que Jance estava em casa, ele nunca saía antes das dez horas. Ligou uma, duas, três, mais de dez vezes e ninguém atendeu. Ligou para seu celular e o mesmo silêncio. Pegou então, as cartas do tarô, embaralho-as pensando na situação. Tirou três cartas: a Lua, o Enforcado e a Torre. Suava frio, sabia que a situação era difícil. Respirou fundo e retirou outra carta - a Morte. Teve vontade de gritar. Jogou as cartas no chão e saiu correndo.
       Nunca esqueceria a cena que viu quando chegou ao apartamento de Jance. Sobre o sofá vermelho, onde tantas vezes se amaram, o corpo de Jance sangrava, mas já sem vida. No corredor, também mortos, os dois filhos ainda traziam no rosto a expressão de espanto e terror. No quarto, agarrado a uma blusa sua, que se esquecera da última vez que lá esteve, o marido também jazia sem vida. Ao lado do revolver, um bilhete: “Acabou. Para quem trai não há perdão. Você nunca terá nem ele, nem a mim, nem uma família”.
       O que se passou depois não lembrava. Estas foram às últimas cenas do seu passado. Depois, sua vida só teve o presente, o eterno e frio presente. Como companhia apenas as cartas do tarô e as fétidas mesas dos bares do centro da cidade. Voltou o olhar para a moça, ela parecia tão feliz segurando as mãos morenas e longas de um homem que a olhava enternecido. Conhecia aquele olhar e o calor de umas mãos como aquelas.

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