sexta-feira, 22 de abril de 2011

STANISLAU

Afastou-se da janela onde observava a noite abafada da cidade. Como um céu de estrelas na terra, as luzes explodiam por todos os cantos lá em baixo, provocando-lhe vertigens.
O apartamento pequeno lhe pareceu menor ainda com a solidão que lhe amarrava o peito até faltar o ar. Morava só como só foi toda a vida. Nunca conheceu a família. Costumava dizer, em tom de gozação que não nascera, surgira por encanto como obra mágica da varinha de condão de alguma fada madrinha. Quando era jovem alguns homens se aproximaram, nada de especial. Trabalhava demais para lhes dar atenção.
- Uma mulher sozinha não pode se dar ao luxo de não guardar algo para o futuro. - Repetia isso a todos e para si mesma à procura de certezas que não tinha. Do futuro, que logo chegou, apenas um apartamento sala-quarto espremido entre dezenas de andares com vista para outros prédios, uma pensão de aposentadoria magra e muita solidão.
Ganhou um gato de uma amiga dedicada num natal. Stanislau, foi este o nome que batizou o gato preto de rabo peludo, que se engrenhava entre suas pernas miando sensualmente.  Adquiriu o hábito de assistir televisão escovando o pelo sedoso de Stanislau. O gato ronronava prazeroso se enroscando ainda mais no seu colo. Dormia com ela na cama estreita e a acordava de manhã cedo com lambidas quentes e suaves.
Uma noite sonhou com Stanislau virando homem. Um homem galante, de casaca preta que lhe beijava a boca com uma língua áspera e morna, deixando-a envolta em nuvens de desejo. Acordou acariciando o gato e pensando no quanto seria bom se ele realmente se tornasse um homem.

Obsessão passou a ser o desejo de ver Stanislau humano. Ouvira falar em magias capazes de transformar algo em outras formas. Mas como adquirir tal poder? Stanislau parecia compreender seus pensamentos e esfregava-se em suas pernas, produzindo intensas ondas de calor pelo corpo.
Passou a frequentar livrarias especializadas em ocultismo. Comprava, lia, às vezes dando crédito, outras não, livros raros e estranhos. Certa vez comprou um sobre alquimia e o poder da transmutação da matéria. Leu-o com avidez.
- Se no passado os alquimistas mudaram formas da natureza por que não conseguirei? Se perguntava vez por outra. Comprou os mais variados apetrechos. O que não encontrava, de acordo com a prescrição do livro, improvisava. O apartamento transformou-se num laboratório medieval, filtros ebulindo em vasos transparentes, fórmulas, poções. Stanislau passeava por entre velas e unguentos com naturalidade e prazer.
Numa madrugada, depois de muitos anos de buscas, achou a fórmula molecular da transmutação. Preparou o cenário. Aquele seria o dia. Colocou Stanislau dentro de um círculo de velas amarelas, enquanto ela invoca o nome de um deus antigo das primeiras civilizações, que iria auxiliá-la no processo. Lambuzou o gato com uma mistura fétida de ervas e dejetos decompostos, a representação simbólica da transformação das moléculas.
A luz transparente da lua cheia canalizada e ampliada através de espelhos côncavos, banhava o corpo do felino com raios brancos, vitais. Ela de olhos fechados procurava unir a força do seu pensamento com a energia mística que tomava todo o recinto. Por horas manteve-se em meditação. O corpo formigava, não mais sentia os membros, era apenas um jato de energia bailando sem matéria, invadindo recantos, ligando-se ao corpo do animal.
Nunca descobriu se apenas adormeceu ou desmaiou. O dia estava claro quando foi acordada por mãos fortes, acariciantes. Abriu os olhos, um cansaço quase mortal tomou-lhe o corpo e alma. Um homem sorria-lhe, imensa boca vermelha de dentes pontiagudos, cara peluda, quase um felino.
(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)



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