quinta-feira, 21 de abril de 2011

ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE (conto)

                                          "Forte angústia produzem-me os suspiros,
Quando a razão me traz à mente triste
Aquela que partiu meu coração;
E, pensando na morte, muitas vezes
Dela me vem desejo tão suave,
Que se transmuda a cor do meu semblante.
E, quando o meu delírio é muito intenso,
Tão profundo desgosto me domina,
Que até desperto pela dor que sinto,
E me transformo tanto,
Que das gentes me afasto de vergonha.
Depois, chorando, só, no meu lamento,
Chamo Beatriz e digo: ‘Estás tu morta?’
E, enquanto assim a chamo, me consolo!"

     O angustiante grito poético de Dante o atormenta ainda mais. Joga o livro contra a parede. As lembranças assombram seu dia. Conheceu Lucrécia nas suas idas e vindas da escola. Gostava de espia-la passar encostado no parapeito da sacada de seu quarto, onde ficava olhando o movimento da rua ao amanhecer. Era bucólico, um renascer de vida. As pessoas passando ainda com os olhos inchados e cheiro de café, subindo a ladeira devagar.

     A princípio, Lucrécia era uma dessas pessoas. Ficava observando o movimento de seus cabelos presos num “rabo de cavalo” com fitas coloridas, o andar meio saltitante de menina quase mulher, a curva dos seios despontando... Não se lembrava de quando começou a se apaixonar. O certo é que a cada dia ficava mais ansioso esperando sua passagem. E talvez por tanto o ver, ela começou a cumprimenta-lo com um bom-dia suave, ligeiro e tímido. Ah, e como ele passou a esperar com ânsia esse cumprimento! Era sem dúvida o evento mais importante do seu dia. Um cumprimento formal, frio, mas que o permitia ouvir sua voz.

     Era um homem de quase sessenta anos, aposentado e solitário. Lucrécia acrescentava luz a sua cinzenta vida. Por isso, querendo se aproximar dela, passou a lhe dar uma flor recém-colhida a cada manhã, de seu jardim. Meio encabulada, e às vezes vacilante, ela recebia com um “muito obrigada” e assim, pouco a poucos ele começou a ganhar sua confiança. Às vezes ela parava e perguntava como ele estava ou qualquer coisa assim.

     Um dia a convidou para jogar damas. Ela veio e jogaram até quase o anoitecer. Veio outras vezes, conversavam banalidades. Tinha quinze anos, morava só com a mãe e era apaixonada por um namoradinho na escola. Ele sentia ciúmes ao imaginar alguém lhe pegando as mãos, beijando seus lábios rosados com cheiro de saliva sadia, quase infantil ainda. Em suas fantasias ele a imaginava deitada em sua cama, nua, encoberta por lençóis que revelavam suas formas ainda sem contornos definidos, de quase uma mulher.

     O desejo de tomá-la para si foi aos poucos lhe embargando a razão. Decorou um quarto que ficava nos fundos da casa, longe da rua, com flores brancas, cortinas rosa, bonecas e bibelôs de porcelanas. Tudo que, na sua cabeça de homem maduro e sem filhos, achava ser do gosto de uma menina quase moça. Quando não estava jogando dama com Lucrécia ou esperando-a na sacada, ele ficava no quarto de cortinas rosa fingindo tê-la ao meu lado, masturbando-se como que a possuindo.

    A concretização de suas fantasias, ou pelo menos parte delas, aconteceu por puro acaso sem arquitetações prévias. Era uma tarde quente e ele estava lendo, logo após o almoço, quando ela entrou em prantos contando que haver brigado com a mãe e pedindo para ficar com ele por uns dias. Quase enlouqueceu de alegria, mas ocultando seu entusiasmo procurou convencê-la a voltar para casa. Lucrécia estava irredutível. Ele então a levou para o quarto dos fundos, o quarto rosa que havia decorado pensando nela. Lucrécia ficou maravilhada e o fez jurar que não contaria a ninguém que estava lá. Jurou.

   Suas noites passaram a ser um inferno. Ouvia, ou imaginava ouvir, a respiração suave de Lucrécia por trás das grossas paredes, deixando-o trêmulo. Passava as noites de vigílias à porta do quarto lutando contra a fome bestial de seus instintos. Sua consciência, ou o que restava dela, mandava-o devolver a menina aos familiares. Mas quando a olhava, o jeito, o cheiro, a alegria jovial que lhe devolvia sonhos e esperanças, coisas esquecidas no passado, mudava de idéia.

    Custa lembrar-se daquela noite. O remorso e o desejo lhe tomam o corpo com a mesma intensidade... Acabaram de jantar. Lucrécia estava pálida pelos dias de confinamento no quarto. Perguntou se ela desejava voltar para casa. Respondeu que não. Insistiu. Disse então que desejava ficar morando ele e o abraçou. Tonto com a aproximação e mesmo sabendo que o abraço era de amizade, ele fechou os olhos e fingiu ser amoroso. Correspondeu o abraço, só que de forma diferente. A envolveu em seus braços procurando senti-la sensualmente. Surpresa e meio incomodada, Lucrécia procurou desvencilhar-se. Porém, ele já não estava em si. Desejos lascivos matavam qualquer senso de racionalidade. Abraçou-a mais ainda tentando beijá-la. Em pânico ela debatia-se lutando como animal tocaiado. Tampou sua boca com violência para não gritar e a arrastou para o quarto.

    Acordou no outro dia extremamente cansado, sem saber direito o que havia acontecido. Ao seu lado, imóvel, Lucrécia estava horrível. Rosto inchado, coberto de sangue. Corpo nú, cheio de hematomas. Procurou reanimá-la, não reagia. Horrorizado, percebeu que ela estava morta.

   Chorou e enlouquecido pegou a arma que guardava na mesinha de cabeceira. Iria suicidar-se, não suportaria viver sem Lucrécia. Covardemente não apertou o gatilho nas diversas tentativas. Por fim, adormeceu novamente. Levantou-se noite escura. O corpo de Lucrécia ao seu lado parecia talhado em cera. Qualquer coisa naquela rigidez o fascinou e sem perceber o que fazia, novamente possuiu o corpo, agora morto.

   Sem coragem de desfazer-se de Lucrécia, ele lavou cuidadosamente seu cadáver e o deixou como que dormindo sobre a cama de lençol rosa-pálido, onde mais uma vez o amou. A frieza da morte, a rigidez da carne o excitava ao ponto de nunca ter imaginado que pusesse haver tanto prazer.

    Um novo ritual se instalou em sua vida. Todas as noites ele ia ao quarto de Lucrécia e mesmo com o corpo se decompondo, ele o possuía com a mesma paixão. Não se importava de fazer amor com um corpo putrefato. Nem o cheiro ou a pegajosidade das carnes que se soltavam dos ossos lhe importava. Ao contrário, quanto mais apodrecido mais paixão o corpo me despertava.

    Vez por outra alguns sentimentos de arrependimento apertavam seu coração por ter tirado a vida daquela criaturinha tão linda e jovem. Porém quando pensava no prazer que sua morte lhe trouxe, na forma daquele corpo rígido, decompondo-se dia a dia, sabia que faria tudo novamente.

     Ao sair do quarto de Lucrécia recita novamente a poesia de Dante, numa louca expiação de seus desejos:

“ Vinde, vinde os suspiros meus ouvir,
Ó corações gentis, penalizados:
Se não partissem, tão desconsolados,
À dor eu deveria sucumbir...”

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

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