quinta-feira, 21 de abril de 2011

MELINA (conto)


Afastou-se decidido das câmaras de torturas e de cheiro de carne queimada. Lá fora, um regato vindo das montanhas trazia o cheiro doce das ervas e hortaliças frescas. Pensou nas vidas que se findavam nos subterrâneos das prisões fétidas. Jamais veriam as águas límpidas do regato. Respirou fundo. Abismos profundos dentro do seu peito abrigavam seus medos. De onde estava também podia ver a cidade rompendo o céu que lhe servia de teto.

As plantas cresciam ao redor da cidade e nuvens se aproximavam, tentando sombrear a terra da luz e do vento. Respira novamente profundo, precisava voltar. A mulher, ainda jovem, jazia acorrentada sobre a pedra negra. Procurou reanimá-la. Sua confissão não estava completa e o tempo escoava rápido. Jogou água fria em seu rosto e lembrou-se do regato que vinha das montanhas. A água lavou as feridas sangrentas que se abriam como flores vermelhas e as lágrimas secas do rosto encovado. Ela não se mexeu. Pensou aliviado que finalmente ela estava morta. Porém, gemidos fracos mostraram-lhe o contrário.
- Vamos, Melina, vamos! Você ainda tem muito o que falar... – Repete a frase varias vezes. É o encarregado das confissões pelo Santo Oficio. Sente orgulho do seu trabalho, mas o ódio resgatado em muitos séculos de dogmas religiosos, lhe incomoda.
A mulher não abriu os olhos. Passou a língua pelos lábios ressequidos, querendo observar gotas da água que lhe escorria pelo rosto.
- E então, Melina? Quem é o pai da criança? Diga, diga!
- Meu filho não ...tem pai...
- Ora vamos, todo mundo tem pai, Melina. Até uma bruxa maléfica como você teve um!
Novamente esquentou o ferro até ficar em brasas, colando-o em seguida no corpo da mulher, que gritou alto.
- Ah, ainda tem forças para gritar? Então não está tão mal assim. E por quase meia hora a sessão de tortura com o ferro em brasa e a cadeira de rolar, que puxava os braços para cima enquanto os pés permaneciam amarrados ao chão, foi repetida sem tréguas, findando com o cansaço do algoz e o desmaio da mulher. Seu corpo era agora um emaranhado de sangue e pedaços de carnes soltas.
Um homem gordo, de aparência desleixada e suja, entra na cela.
- Como é, padre, ela já confessou o nome do diabo-amante?
- Não. Essa mulher tem mais resistências que as outras. Mas confessará. Em nome de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Salvador da humanidade, ela há de confessar, e eu vou acabar com essa raça lasciva das malditas bruxas! – Fala o jovem padre, enquanto o suor escorreu-lhe pelo rosto avermelhado de emoção e calor. Reaqueceu o fogo, assoprando as brasas que se confundiam com os ferros da tortura.
- Eu acho que ela não vai agûentar não, padre. Se passar desta noite, é para morrer de madrugada.
- Creio que não. Essa prostituta da Babilônia não morrerá enquanto não confessar o nome do demônio que acasalou com ela, para gerar aquele... aquela criança!
- Olhe padre, a bruxa está acordando! – Grita o gordo.
A mulher abriu os olhos com dificuldade, fixando-o padre.
- Eu quero... meu filho.
- Pois diga o nome do pai dele.
Melina vagueou o olhar pela cela escura, cheia de recantos ensombrados. Por mais que se esforçasse não entendia o porquê de estava ali, sendo torturada. Lembrou-se que lá fora o inverno deveria estar começando e os pingos da chuva estariam queimando as folhas secas e amareladas das árvores. O vento frio que descia da encosta estaria mais frio ainda, obrigando os Elfos e Gnomos a se esconderem nos troncos das árvores ou debaixo das pedras. Lembrou-se ainda de Croak, um ser das entranhas da terra, por quem se apaixonara. Mas como explicar ao padre que ele não era um demônio?
- Padre, queime o rosto, ele ainda está limpo. – Sugere o gordo capitão da Guarda Imperial.
- Não, não. Primeiro apenas o ventre e o sexo, que são os mistérios das mulheres. A tentação que perverte os homens desde Lilith e Eva, as perseguidoras do pobre Adão!
Melina parecia não mais sentir o ferro que lhe arrancava a carne dos ossos. O único desejo era conhecer o filho, antes de partir para o mundo encantado do qual falava Croak, onde o mel jorrava das árvores e todos dançavam e cantavam durante o dia, e as noites eram tão claras que não se precisava do fogo, e dos rios corriam perfumes gloriosos. Tentou sorrir, mas a imagem da tia, a beata velha e melancólica com quem morava, entrava nas visões do mundo encantado, lhe estragando também este prazer. Deveria estar contente agora, pois tão logo soube da gravidez, denunciou-a ao padre da vila:
- Ora padre Lóscio, ela nunca andou com homem, isso não! Se estar grávida, o pai só pode ser um dêmonio!
- Pode ser, dona Maroquinha. Porém não temos certeza.
- Como não? Ela passava os dias andando pelas montanhas. E sempre sozinha. Eu acho que Melina é uma bruxa! Eu já não lhe contei de como ela me curou, a perna inchada? Um piscar de olhos e lá estava a perna curada. Disse que foi ajudada pelos devas da natureza, que nada, foi pelo demônio, isso é que sim! Que Deus me perdoe, é minha sobrinha, mas sempre a achei estranha. Esse cabelo quase branco de tão loiro! E mais parece uma anã de tão pequena!
Meses depois Melina pariu, entre os olhos de pavor da tia e o enojado padre. Foi levada para a masmorra no subterrâneo da igreja, sem ao menos conhecer o filho.
- Padre, em nome de Deus...me deixe ver a criança.
- É, provavelmente tua memória refrescará quando conheceres a criaturinha que botastes no mundo. Capitão José, traga a criança.
Minutos depois, o homem gordo retornou com um pequeno embrulho de panos. O padre abriu as correntes e ela com esforço recebeu o filho. Miúdo, quase do tamanho da palma de sua mão, a criança tinha olhos escuros que combinava com a tez morena cor de terra, as orelhas pontudas lembrando-lhe Croak.
Num gesto rápido, Melina devorou o pequeno ser e saiu voando por uma fenda da ventilação do teto da cela.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

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