quinta-feira, 28 de abril de 2011

A PRINCESA DE ÉBOLI – MOMENTOS FINAIS

Pastrana, janeiro de 1590, reinado de Felipe II da Espanha.
Meu querido Antônio,
Estou sendo encerrada na torre do meu palácio em Pastrana. Escrevo e ouço o barulho dos guardas reais fechando à porta que dá acesso a escada do salão principal. Estou presa na ala da torre. Pouco a pouco uma escuridão lúgrume e sufocante toma conta do recinto onde estou. É apavorante. Escrevo para manter minha sanidade, para não esquecer quem sou!
Sou Ana de Mendoza - herdeira única de uma das mais prestigiadas e poderosas casas da nobreza espanhola! Sou a princesa de Eboli do condado de Pastrana. No correr desta noite, neste quarto vazio, acompanhada de minha filha mais nova e a saudade de ti, sinto um torpor na alma e o enrugar da idade, que começa a pesar no meu corpo. As horas correm impiedosas, e não me dão mais o tempo. Penso apenas em morrer.
Sinto falta principalmente dos teus olhos, meu amado Antônio. Dizem os cabalistas que para cada tipo de erro há uma fórmula particular para reparar tal erro. A minha formula foi te deixar livre para seguir com tua vida. Libertando-te, libertei minha alma porque tu a levastes contigo. A liberdade de opção me foi negada, presa injustamente, sinto-me feliz em saber que tu conseguiste escapar daquela fétida prisão e dos malditos inquisidores.
Conseguirei ficar viva se souber que me amas. Acreditarei que ainda existe vida se me escreveres dizendo do seu amor por mim! Acreditarei ainda mais, se em suas cartas me falares da tua saudade, da falta que sentes de nossas noites de entrega. Se tu, meu Antônio, me escreveres me sentirei contigo. Sentirei e compartilharei da tua tristeza, sentindo-a no meu próprio corpo. Se me contares das tuas dores, eu saberei que ainda estais comigo e o peso dessa prisão será menor.
Pensar em ti liberta-me. Sinto que meus pensamentos tem uma força que acalenta meu coração, invocando lembranças de um passado recente, cheio de emoções. Eles possuem a capacidade de cruzarem os mares, atravessarem as montanhas, correrem pelas estradas em tua procura.
Pensar em ti faz o tempo voltar para quando o tempo não tinha tempo e éramos só nós dois. E faz tão pouco tempo que ainda sinto suas mãos tocando meu corpo cheias de desejos. Quando descobriram nosso amor, o tempo deixou de ser tempo e passou a ser saudade, restaram apenas às lembranças de nossos encontros, conversas sem fim permeadas de beijos e paixão.
Escrevendo-te agora, embora sabendo que jamais receberá esta carta, sinto o tempo dar saltos entre o passado feliz e o medo do futuro. Já não tenho esperanças, sei que morrerei nessa torre. Por isso, deixo que o tempo passe alimentando minhas ilusões e meus sonhos de tê-lo novamente comigo, e assim, poder novamente gargalhar diante das tuas divertidas palavras que só os amantes compreendem. Tenho pressa em escrever para não deixar que o tempo apague minha memoria e tudo que vivemos perca o sentido.
Acordo e sinto o cheiro úmido do nevoeiro lá fora, embora aqui dentro tudo seja tão escuro e abafado. Ouço o despertar do dia pouco a pouco no povoado. Pastrana amanhece. Todos os sons que entram neste quarto faz-me perceber que meu tempo estar findando porque as horas não passam para quem vive no passado. Enrosco-me nas cobertas da cama, que um dia já recebeu meu prazer, sentindo-me segura e isso é tão raro. Estas quatro paredes que me aprisionam também me protegem.
Pastrana sempre foi o meu lugar encantado, o lugar onde serei a eterna princesa, agora encantada e presa entre paredes que um dia foi meu lar. Paredes onde meus segredos foram guardados e revelados. Pastrana me abriga, me protege e me aprisiona. Meu palácio, minha prisão. Paredes que me escondem do mundo e retira meus sonhos que se perderam quando tu foste embora.
Já escrevi dezenas de cartas ao Rei, pedindo perdão por crimes que não cometi. Sonho com este perdão onde poderei me reunir a ti. Mas tudo é em vão. Sei que não terei perdão, porque meu maior crime foi me apaixonar por ti. Este crime meu rei jamais me perdoará, pois assim, o trai como mulher. Trair o amor de um rei é muito mais mortal que uma traição politica. Mas o que posso fazer? Meu amor por ti foi maior que meu senso de praticidade. Como amante do Rei eu tive poderes e privilégios, como tua amante apenas a dor, a humilhação e a prisão. Mas mesmo assim, em nenhum momento me arrependo de ter sido tua!
Devo parar de escrever agora. Meus olhos ardem de choro e escuridão. O silencio lá fora é total. Os guardas acabaram de cimentar a parede, agora meu palácio realmente se tornou uma prisão. Agora sei que minha vida acabou.
NOTA:
Ana de Mendoza (1540-1592), a princesa de Éboli, foi uma mulher dona de uma beleza e inteligência que suscitaram reações apaixonadas na corte de Felipe II, que foram da atração ao repúdio. Usava uma pala no olho direito, cego acidentalmente ainda criança e foi casada com o português Ruy Gomes da Silva (1529-1573), príncipe de Éboli e duque de Pastrana. Após ficar viúva, foi amante do rei, como também de seu astuto secretário Antônio Pérez (1540-1611), e por isso, se viu implicada numa trama política e sentimental que a levou a prisão e morte em seu próprio palácio em 1591. Antonio Pérez fugiu e se salvou, morrendo muitos anos depois na França.

domingo, 24 de abril de 2011

A VIDENTE

     
      A mosca voava em volta do seu rosto envelhecido. Vez por outra espantava o impertinente inseto com a mão encardida pela velhice, e voltava a olhar a fotografia quase apagada pelo tempo, conversando em murmúrios com ela mesma. Só desviava a vista da foto quando passava alguém para sentar-se numa das mesas do pequeno bar. Ninguém sabia ao certo seu nome, a conhecíamos por “Vidente”, e parecia que realmente tinha alguns poderes quando espalhava as velhas cartas desbotadas de um baralho que ela chamava de “tarô”.
        Seu Agenor, o dono do bar, não reclamava da presença silenciosa e estranha daquela mulher. Parecia até gostar. Dizia que atraia freguês. Eu nunca gostei dela, cheirava a tristeza e dor. Das poucas vezes que conversei com ela me falou de uma família bem de vida e me mostrou a tal foto. Vi um casal elegante e jovem com duas crianças alegres. A mulher resplandecia numa orgulhosa felicidade enquanto recebia o olhar apaixonado do marido e segurava possessivamente os ombros das crianças. Perguntei quem eram e a Vidente me respondeu ser ela e a família. Ri alto, olhando-a de baixo até em cima, e falei qualquer coisa como “e onde estão esses príncipes?”. O olhar de dor e solidão que ela me devolveu doeu minha alma. Uma discreta lágrima correu de seus olhos e falou baixinho quase não me deixando escutá-la: “se foram...”.
         Nunca soube se era real ou não a história que tempos depois me contaram sobre a Vidente, o certo é que passei a evitá-la como se sua dor fosse contagiante. Eu era jovem, carregada de vida e sonhos. A tristeza que saia de cada poro daquela mulher me enojava. Era como se eu recusasse a acreditar que a vida fosse tão cruel. Às vezes, quando eu chegava mais cedo no bar do seu Agenor para tomar um choppinho esperando os colegas do banco, ela me abordava querendo jogar as cartas para ver minha vida. Nunca aceitei, apesar de algumas amigas terem me dito que a velha era o máximo.
        Quando chego perto o rosto bonito da mulher da foto confunde-se com o rosto enrugado e triste da Vidente, e isso me embrulha o estômago. Eu quero sair correndo, esquecer a história dramática desse miserável ser. Pedi muitas vezes ao seu Agenor para não deixar a velha entrar no bar, mas por piedade ou ganância o maldito nunca me atendeu. Os amigos não entendem minha implicância com a “mulher das cartas”. Talvez nem eu. Apesar de no íntimo achar que aquela figura sempre vestida de preto, com os cabelos crespos despenteados, cheirando a dor e suor me incomode por me lembrar da minha própria solidão. Acho que tenho medo de ficar como ela, vagando pelos bares mostrando a dor de minha alma. Acho que eu já faço isso de alguma forma...
        
          A velha olhava curiosa para a moça de vestido colorido. Por que será que nunca aceitou jogar o tarô? Perguntava-se vez por outra. Apesar de saber que a incomodava, sentia uma estranha ligação com a moça. Gostava de vê-la ri alegre, os lábios sempre pintados de vermelho vivo moldurava uns dentes tão brancos e brilhantes que pareciam artificiais! Ficava horas olhando a moça. Vestia-se sempre com sensualidade, roupas coladas mostrado as carnes duras de um corpo jovem. Talvez tivesse trinta anos no máximo. Trinta anos... Fazia quase este tempo que tudo aconteceu.
      Tinha trinta e cinco anos quando toda a sua vida mudou bruscamente. Morava numa casa grande, bem decorada, muitos livros, muitos quadros de pintores conhecidos. Gostava de receber amigos em longas noites de festas onde o riso misturava-se ao sabor doce do vinho e o cheiro suave dos perfumes caros. Era bonita, inteligente e bem casada, uma trilogia que os deuses não perdoam. Exalava sensualidade, adorava se vestir para mostrar o corpo bem contornado, de carnes macias e brancas. Gostava de ver o olhar sedento dos homens ao seu redor embora fosse muito fiel.
     O marido a adorava e lhe cuidava como um bibelô raro. Era bom receber todas as atenções, o carinho, dava-lhe a sensação de ser superior ao mundo. Os filhos, dois meninos levados e vivos às vezes lhe enervavam, mas os amava com a força das entranhas de uma mãe possessiva. Por vezes se pegava pensando em sua vida era tão perfeita que custava a acreditar que existisse a dor.
      Entre seus passatempos prediletos estava o jogo do tarô, estudava tão seriamente que o marido brincava dizendo que ela iria se transformar numa cartomante. Sentia um aperto estranho quando ele dizia isso, parecia tão profético! Mas adorava aquele jogo secular, com suas cartas tão coloridas e misteriosas, simbólicas e arrogantes. Pareciam guardar todos os segredos do mundo. O jogo lhe fascinava pela precisão com que revelava todos os segredos, lhe dando a sensação de poder. As amigas viviam lhe pedindo para jogar para elas. Sabia de tudo de todos do grupo, era uma espécie de guru e isso lhe dava muito prazer. Não só pelo poder de manusear vidas como também para se comparar com aquelas vidinhas tão monótonas ou problemáticas.
       Nesses momentos sentia-se como uma eleita, uma privilegiada pelo destino por ter uma vida tranqüila e feliz. Obviamente que tinha alguns problemas, mas tudo era tão leve, tão suave que não chegava a tirar o brilho adocicado da vida. Hoje sabe, e talvez sempre soubesse que o destino apenas lhe deu um oásis antes da grande travessia ao escaldante e solitário deserto no que se transformou sua existência.
        Tinha trinta e cinco anos, uma casa bonita, um casamento perfeito, dois filhos adoráveis, juventude, inteligência, beleza - perfeição demais para essa vida. Ela não passaria despercebida pelas três Parcas - as deusas do destino.                                  
        Eram umas cinco horas da tarde quando conheceu Jance. Apressada, andava quase correndo pelas fileiras das prateleiras do supermercado. Estava atrasadíssima no preparo do jantar que ia oferecer a alguns amigos importantes do marido.
- Este molho ficará uma delícia na carne que você vai preparar.
              Olhou curiosa para o dono daquela voz rouca. Era um homem interessante, tinha um olhar meio cínico e um sorriso misterioso.                
              - Como sabe que vou fazer carne hoje?
              - Simples, lhe vi comprando na sessão de carnes e agora está na sessão de condimentos...
              Pegou o vidro de molho pronto que ele lhe oferecia. Leu as instruções e olhou para o homem maliciosamente.
               - Por acaso o senhor é representante desse produto?
               - Não, infelizmente não. Mas o adoro. Meu nome é Jance e sou gerente comercial de uma transportadora.
              - Ah, sua profissão tem tudo haver com seus gostos culinários! – Respondi rindo.

        Agradeceu e deu as costas rapidamente. De repente sentiu raiva daquele homem intrometido que deixou seu coração pulsando forte e sua respiração ofegante. A voz rouca ainda vibrava no seu ouvido. Olhou o vidro de molho no carrinho de compras e como para se vingar, devolveu-o numa prateleira qualquer.
          - Mas eu juro que o molho é uma delicia!
          - O senhor está me seguindo?
          - Não! De maneira nenhuma. É apenas coincidência estarmos nas mesmas sessões e...
          Deixou-o falando sozinho e seguiu apressada para o caixa. O sangue corria tão depressa que o escutava latejando nas têmporas.
          Naquela noite estava nervosa. Conversava alto, num tom de voz esgaçado. Deixou cair o garfo por duas vezes, o marido a olhava em tom de censura e tiveram uma briga quando todos saíram. Chorou madrugada adentro e pela primeira vez em muitos anos se sentiu triste e igual a todos os mortais.    
          Voltou ao mesmo supermercado várias vezes naquela semana. Buscava algo que  não sabia direito o que era, ou sabia mas não ousava pensar. O encontrou muitos dias depois. Ele estava novamente na sessão de condimentos. Olhou de soslaio as mãos morenas e longas do homem que segurava um vidro de ervas finas. Desta vez foi ela quem se aproximou.
           - Realmente o senhor gosta muito de cozinha não?
           - É o meu hobby. E você, o que gosta de fazer? - ele respondeu e perguntou tão naturalmente como se a esperasse há tempos. Ou como se já se conhecessem e fossem velhos amigos.
          Almoçaram juntos e conversaram sobre tudo. Tinham muito em comum. Ele também era místico, adorava filosofia oriental e sentia uma grande curiosidade sobre o tarô.
         - Não se sabe quem inventou o tarô. Talvez venha do antigo Egito ou de uma cultura ainda mais antiga, não sei. O certo é que é um jogo intrigante. Parece que todas as barreiras do tempo e do espaço são derrubadas quando se está em frente às cartas. De repente é como se o futuro não passasse de uma projeção da mente captada pelas cartas...
        - E será que o futuro não é apenas isso mesmo? – Perguntou ele, num tom brincalhão, meio implicante.
        - Não sei... seria simples demais. Fico assustada só em pensar que posso influenciar meu futuro com minha mente.
        - E por quê?
        - Porque então Deus deixaria de existir! Não é ele quem determina a vida?
        - Não o meu Deus! – Respondeu ele de forma segura. - Acredito que a vida é muito mais do que um jogo de xadrez de Deus com a humanidade. Acho que Deus é tudo que me rodeia. É minha mente, meu corpo, minha alma.
      Poderia ficar por horas ouvindo-o falar. Era tão simples e profundo ao mesmo tempo. E assim viraram amantes. Não sentia culpa. Seu amor por Jance permitia tudo, até mesmo trair o marido. Todos lhe elogiavam a vivacidade e a beleza, era como se a felicidade, antes artificial, lhe estampasse a alma. O problema começou quando a situação começou a fugir do controle. Estava tão apaixonada que a família, os amigos, a vida leve e suave já não lhe importava. Queria apenas o cheiro, o gosto do corpo de Jance, o beijo onde a saliva adocicada entrava em sua boca misturando-se a sua própria saliva.
       Uma noite, voltando de mais um encontro com Jance, o marido disse-lhe friamente que já sabia de tudo e que ela teria uma surpresa. Perguntou ansiosa sobre o que ele falava, não respondeu. Trancou-se no gabinete de trabalho e por mais que ela gritasse perguntando o que ia fazer não obteve resposta.
        Naquela manhã, quando levantou e perguntou pelos filhos, a empregada respondeu que haviam saído com o pai muito cedo. Um frio subiu espinha à cima. Será que havia saído de casa e levado às crianças junto? Correu ao telefone querendo ouvir Jance, sua voz lhe acalmava, ele era sempre tão sensato. O tilintar da campainha do telefone chamando do outro lado só aumentava sua ansiedade. Sabia que Jance estava em casa, ele nunca saía antes das dez horas. Ligou uma, duas, três, mais de dez vezes e ninguém atendeu. Ligou para seu celular e o mesmo silêncio. Pegou então, as cartas do tarô, embaralho-as pensando na situação. Tirou três cartas: a Lua, o Enforcado e a Torre. Suava frio, sabia que a situação era difícil. Respirou fundo e retirou outra carta - a Morte. Teve vontade de gritar. Jogou as cartas no chão e saiu correndo.
       Nunca esqueceria a cena que viu quando chegou ao apartamento de Jance. Sobre o sofá vermelho, onde tantas vezes se amaram, o corpo de Jance sangrava, mas já sem vida. No corredor, também mortos, os dois filhos ainda traziam no rosto a expressão de espanto e terror. No quarto, agarrado a uma blusa sua, que se esquecera da última vez que lá esteve, o marido também jazia sem vida. Ao lado do revolver, um bilhete: “Acabou. Para quem trai não há perdão. Você nunca terá nem ele, nem a mim, nem uma família”.
       O que se passou depois não lembrava. Estas foram às últimas cenas do seu passado. Depois, sua vida só teve o presente, o eterno e frio presente. Como companhia apenas as cartas do tarô e as fétidas mesas dos bares do centro da cidade. Voltou o olhar para a moça, ela parecia tão feliz segurando as mãos morenas e longas de um homem que a olhava enternecido. Conhecia aquele olhar e o calor de umas mãos como aquelas.

sábado, 23 de abril de 2011

MEDO DA SOLIDÃO



Ela tocava seu rosto sem acreditar no que via. Rugas suaves, poros dilatados, pele áspera. O espelho parecia um maldito quadro da verdade. Pegou algumas fotografias antigas, onde se retratava alegre, brejeira, fazendo poses sensuais e brincalhonas. Como era estranha a velhice. Não fazia muito era jovem, bonita, desejada. E agora estava perdendo seu poder de escolha. Se antes escolhia seus homens, agora teria que mendigar atenção. Estava ficando invisível para os homens.

Tirou toda a roupa e viu um corpo flácido, cheio de celulites que não parecia em nada com seu antigo corpo, ou pelo menos com o corpo que guardava na memória. Sentiu um frio estranho, de medo e questionamentos. Como era ser uma velha? Como será viver sem chamar atenção dos homens? Nunca aprendera a se amar de verdade. Sempre medira seu valor através do olhar de admiração e desejo dos homens e de inveja das mulheres. E o tempo correu rápido, sem notar estava na meia-idade, com quarenta e cinco anos, dez de descasada e um filho quase adulto.

Teve muitos amores depois do casamento. Alguns importantes, outros nem tanto. Mas todos bons. Alimentava-se de amor como borboletas vagando entre cores e néctar. A qualidade nunca foi importante, o que queria mesmo era mostrar ao mundo que não estava só. Solidão significava abandono, rejeição, e isso não suportava. Nunca teve uma profissão, primeiro porque casou cedo, quase uma adolescente, e o marido não queria vê-la fora de casa. Depois, porque a pensão do ex-marido lhe permitia viver confortavelmente. Uma pensão generosa, fruto talvez do arrependimento por tê-la abandonado pela balconista de peito grandes da sua loja de ferragens. Mas isso era coisa do passado, que não tinha mais sentido ficar lembrando. Na época, quase morreu de dor pela traição do marido, depois ficou até feliz por pode deitar-se com qualquer um que lhe agradasse.

No momento vivia uma relação com um homem bem mais velho e casado. Não tinha preconceitos. Se uma vagabunda qualquer lhe roubou o marido, por que ter vergonha de namorar o marido de outra? Queria mesmo era ter um corpo quente para esquentar o seu e um nome para falar para as amigas. Mauro, o namorado, era gordo e ciumento. Visitava-lhe dois dias na semana, e lhe trazia chocolates ou pequenos presentes, uma correntinha dourada, uma blusa, um brinco. Mas adorava mesmo era lhe dar chocolates. E ela já estava até ficando parecida com ele: gorda e flácida. Será que era de propósito? Não importava. Gostava muito de comer os chocolates, e os devorava em minutos.

Ela era assim mesmo, moldava-se aos homens, sem importa-se com nada. Nunca dizia não. Achava que se negasse algo perderia seu homem. Sua avó, sua mãe, suas tias, todas foram passivas, e ela também o era. A mãe casara também cedo, com um viuvo trinta anos mais velho. Viveu com medo desse marido autoritário e velho, que tinha muito ciúmes e gritava por qualquer coisa. Quando o pai morreu, ela era uma adolescente tímida e bonita, que casou aos dezesseis anos com o filho do dono da mercearia da esquina. Foi fiel, apesar das muitas tentações a sua volta, durante todo seu casamento. Não entendeu nunca porque o marido havia lhe deixado. Sempre fora tão companheira, tão servil. Até propôs ignorar o caso do marido, para ele não sair de casa. O problema foi que a moça de peitos grandes não aceitou ser a outra, e ele se foi. Daí por diante procurou desesperadamente um substituto para o ex-marido, encontrando somente um bando de homens famintos por sexo e egoístas.

Está tão absorvida nos seus pensamentos e na carícia gostosa do vento que entra pela janela aberta e bate suave no seu corpo, que não nota quando Mauro entra na sala e fica surpreso ao vê-la nua, no meio das roupas espalhadas, cremes e espelhos de tamanhos diversos.

- Que diabos é isso? Endoidou de vez, é?! - pergunta quase gritando. Ela apenas olha o homem suado, nervoso, com a enorme barriga escorrendo das calças e da camisa desalinhada. Tem vontade de ri da figura desajeitada de Mauro, enquanto pensa pela milésima vez, o que fazia aquele homem na sua vida.
- Estou lhe esperando, amor! Já jantou?

(do livro “As Várias Maneiras de Amar” – contos - 1999, Fortaleza/Ce)

TRAIÇÃO, DIVINA TRAIÇÃO (conto)


A noite está escura, gelada e dói no meu peito. É uma dor suave que escorrega pela minha alma como uma carícia de mãos frias. Hoje eu o vi com ela. Deve ser uns quinze anos mais nova que eu e o que mais doeu foi me reconhecer naquele sorriso fácil de mulher jovem. Eu era como ela, ardente, sensual, viva. Onde será que sepultei minha juventude? Nesse casamento de quase vinte anos?

Hoje eu o vi com ela e pensei nas quantas bocas deixei de beijar, nos quantos corpos que deixei de tocar ou nas milhares de fantasias que deixei de realizar com os muitos homens que desejei. Estranho o que se faz por medo de perder. Eu o amava e não queria acabar com o meu casamento! Quanta ironia. Deixei que meu corpo ficasse flácido e meu brilho apagasse para não ceder as tantas tentações que o mundo me oferecia. Eu vi seus olhos de desejos, os mesmos olhos que me lambiam antes da sua língua... Que agora lambe a moça jovem. Como dói! Dói e eu tento suavizar intelectualizando: Ah, mas é comigo que ele dorme todas as noites... Dorme sonhando com os seios brancos e sedosos da moça jovem! Quantas noites deve ter me acariciado pensando na moça e no seu corpo que cheira a sexo. E nas vezes que descarregou seu sêmen nas minhas entranhas desejando estar dentro da moça... Eu o odeio! E odeio mais a mim mesma por ter me privado da vida.

As horas correm soltas, voando como o vento que gela meu corpo. Angustia que aperta o peito e não sei o que fazer com ela. Que rumo dar a minha vida? Eles pareciam tão felizes... Lembrava a nós mesmos, anos atrás. Ele me acariciava e dizia que eu era bonita, que me amava. Será que me procura novamente numa mulher mais jovem? A gente muda tanto quando envelhece. Antes eu era alegre, risonha. Quanto tempo que não rio escancarado? Riso que vem das entranhas, riso de verdade.

- Ainda acordada, meu bem? O que você faz sentada no escuro? - Tão absorvida em meus pensamentos que nem o vi entrar. A voz dele me assusta. Joga as chaves do carro dentro do cinzeiro e fico escutando o eco do som das chaves encontrando o vidro do cinzeiro transparente, de cristal caro, presente de algum aniversário de casamento com certeza. Com o que será que ele presenteia a moça? Perfumes, jóias, sedas? Os homens são tão sem imaginação...

- O que pensa essa cabecinha linda? - Pergunta ele enquanto acaricia meus cabelos e me beija na testa. Eu queria era um beijo de língua, sufocante e ardente como os que ele deve dar na moça! Ele senta ao meu lado e ainda posso sentir o cheiro de perfume adocicado e caro, o perfume dela impregnado no seu corpo.
- Nada. Não penso em nada! Não vivo nada, não sou nada! - Ele me olha surpreso. Recolhe o abraço e se afasta.
- O que houve? Está com raiva de mim? - Pergunta irritado. E o que respondo agora? Que eu o vi com uma mulher num barzinho de beira mar? E o que aconteceria depois? Estou preparada para largar esse homem e buscar a vida e o prazer no mundo lá fora?
- Não, querido. É só um pouco de dor de cabeça. Passa logo. Quer que eu esquente o jantar? - Forço um sorriso e me levanto para não sentir o cheiro da moça no corpo dele. - Deixei frango no forno, você quer que eu esquente? - Tudo é tão banal, nossa conversa, nossa proximidade...
- Não, já jantei... com uns amigos. - Levanta-se e sai em direção ao quarto desabotoando a camisa e cantarolando música de FM. Deve ser música de motel, penso enquanto o vejo sumir no corredor escuro. O que fazer? Não sei mais viver sem esse casamento, parece emprego antigo, tenho medo de mudar e ser pior, perder a estabilidade, a segurança. Que segurança? Ele pode me largar a qualquer momento para ir viver seu prazer. E o que digo agora? Que o vi com outra? Será que vai adiantar? Ele vai negar e eu vou acreditar porque preciso acreditar.
- Amor, vem cá! - Escuto sua voz gritando do banheiro e tenho vontade de lhe mandar pra merda.
- Sim, querido? - Chego até a porta do quarto. As roupas estão jogadas no chão. Calça, camisa, cueca se amontoam. Será que ele fez assim no motel? Deixou as roupas jogadas depois de retira-las apressado e ofegante? Imagino cenas dele com a moça rolando entre desejos e sussurros, machucando ainda mais meu peito.
- Me dê uma toalha nova, sabe que odeio toalhas molhadas! - Entrego-lhe uma toalha branca. As toalhas de motel também são brancas, penso perversamente.
- Acho que vou viajar no final de semana à serviço. O diretor do banco me quer fiscalizando umas obras no interior. É uma viagem chata. Tá quente por lá... - E fica falando como que se desculpando por não me convidar. Sei que viajará com ela para alguma pousada da beira de praia, onde tostarão ao sol e farão sexo melados de areia.
- São coisas da profissão, querido. Quer que eu arrume sua mala?
- Não, pode deixar que eu mesmo arrumo.

Na certa não quer que eu veja as roupas leves que vai colocar na bolsa de viagem. Deita na cama ainda enrolado na toalha e pouco depois começa a roncar. Retiro a toalha de cima do seu corpo e penso que vejo marcas de unhas na sua barriga e coxas. Viro o rosto enquanto as lagrimas finalmente descem por meu rosto cansado. Deito-me ao seu lado sentindo seu hálito que cheira a bebida, enojada e resignada. Será mais um final de semana sozinha, brigando com os filhos adolescentes e limpando armários e gavetas.

(do livro “As Várias Maneiras de Amar” – contos - 1999, Fortaleza/Ce)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

OS OLHOS DA SERPENTE


Olhou a forma que se banhava no mar escuro. Golfinho branco em pulos acrobáticos, pensou. Mas quando a forma saiu da água torcendo longos cabelos, percebeu que era uma mulher. Caminhava devagar, coxa esfregando uma na outra sensualmente, penteando fios de cabelos em desalinho com os dedos. Meio encoberta pelas sombras fosforescentes da lua deitou-se na areia clara e começou a mexer o corpo de tal maneira que parecia uma roldana em movimentos circulares, numa estranha dança horizontal.

Procurou permanecer o mais escondido possível, evitando ser percebido pela estranha mulher. Por alguns segundos, no entanto, como pressentindo algo, ela virou-se na direção das pedras onde ele se achava e seus olhos brilharam de maneira anormal com a luz do luar refletida nelas. Eram de um lilás esbranquiçado, e faiscavam como fogo. Teve medo e encolheu-se ainda mais, até sentir o corpo doer pelo desconforto da posição e a aspereza das pedras.

Com um movimento brusco, ela levantou-se e correu de volta ao mar, deixando pegadas na areia molhada. Nadou por algum tempo, mergulhando e reaparecendo logo depois. Em dada momento mergulhou e não mais veio à tona. Esperou ansioso, tenso, a misteriosa mulher, por quase meia hora. Saiu do esconderijo com a certeza de que ela não mais retornaria. Um estranho aperto na alma, como uma saudade amargurada, apossou-se-lhe do corpo. Queria a todo custo rever aquela mulher.

Por uma semana ficou nas pedras da praia, esperando-a. E finalmente, sete dias da primeira aparição, ela retornou. Os mesmo movimentos, gestos, um ritual ensaiando, pensou ele. E sem mais poder se conter, resolveu aproximar-se.

Saiu das pedras devagar, caminhando com suavidade para não assustá-la. Tocou-a gentilmente, temendo que fosse dissolver-se, miragem perdida na escuridão, nascida de seu inconsciente. Ela, porém, não pareceu surpresa com a sua presença. Aceitou-o calmamente como se há muito o esperasse. Não trocaram uma palavra. Amaram-se em silêncio, perdendo-se ele nos olhos lilases esbranquiçados, como se uma outra dimensão o tragasse. Ela movia-se ondulante, envolvendo-o com pernas e braços estranhamente alongados.

Quando finalmente explodiu em orgasmos, pensou: “vou partir-me em mil pedaços!”. Deixou-se ficar sobre o corpo da mulher misteriosa, sentindo a textura da pele misturada a um cheiro salino. Ela moveu-se inquieta, levantou-se, acenou-lhe e retornou as águas fundas de onde emergira.

Não mais a viu. Meses esperou em vão. Noites solitárias, olhando a imensidão escura das águas do mar. O dia geralmente encontrava-o sentado sobre as pedras ásperas, chorando quase enlouquecido, lembrando-se de uns olhos lilases esbranquiçados. Uma manhã, depois de mais uma noite de espera, um amigo lhe fez sinal. Aproximou-se e sorridente como uma criança que acabara de fazer uma travessura, para mostra-lhe algo entre as pedras. Era a forma longa, rosada de uma serpente enorme, do tamanho de uma pessoa.

- Deus, veja que olhos estranhos! – gritou o amigo.

Lilases, porém, opacos pela morte, os olhos da serpente o chocaram. Lembravam-no de outros olhos que cintilavam refletindo a luz da noite. Num impulso, agarrou o corpo pegajoso e mole do réptil e lançou-se ao mar. Abraçados afundaram nas águas mornamente envolventes.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

OS VISITANTES DA NOITE


Não compreendia o que via: homens pequenos, peludos como animais selvagens, dançando macabramente, exibindo dentes pontiagudos e órgãos sexuais erectos. Era amedrontador. Sons exóticos de tambores que pareciam pulsar do coração embalavam seu corpo e um vento frio fazia crepitar o fogo de uma faiscante fogueira perto de onde estava deitada. No alto, sobre sua cabeça, olha horrorizada para um ser terrível com duas faces diferentes, uma feminina outra masculina que se confundem em constantes mutações, por momentos monstruosamente feias, noutros angelicalmente belas. O ser lhe acaricia o corpo de forma sensual.

A cabeça rodava e ela não tinha a menor idéia de onde se encontrava ou como chegara até ali. Sentia-se sonolenta e ao mesmo tempo excitada, o calor do fogo próximo, a música, o cheiro de ervas doces queimando. Tudo eram extremamente irreal e real ao mesmo tempo.

Algumas mulheres nuas, de peles muito brancas, cheirando a ervas e suor, desenhavam alguns símbolos no seu corpo com uma substância pegajosa, que logo depois foi derramada sobre ventre e escorreram por entre suas pernas. Um arrepio profundo, de prazer, provocou-lhe gemidos enquanto os homenzinhos e mulheres de seios despidos lambiam o líquido esparramado sobre seu ventre e sexo com línguas ásperas e ágeis. Envolta na sensualidade do momento, não percebeu quando o ser de faces diferentes deitou-se sobre ela, penetrando-a com violência, arranhando e rasgando-lhe as carnes...

Os gritos da mãe chamando-a, lhe despertaram. Sentia-se cansada, deprimida, parecia mesmo que se encontrava doente de tão dolorido que o corpo estava. Havia sonhado com algo que não conseguia se lembrar, e isso a deprimia. Levantou-se devagar, apoiando-se nas paredes e entrou na cozinha. O cheiro do café fresco naseou-a.

A mãe resmungava baixinho enquanto cortava legumes e carne para o almoço. Estava velha, muito mais velha que sua idade. As mãos mais pareciam garras de tão secas e enrugadas. Sentiu pena da mãe. Moravam tão distantes da civilização, que às vezes duvidava da existência de mais pessoas no mundo, senão ela, a mãe e os dois irmãos.

- Está doente? Parece tão abatida... - Pergunta a mãe.
- Não estou me sentindo muito bem. Faz um chá de hortelã pra mim, mãe.
A velha olhou a filha com inquietação. Alguma coisa estranha havia acontecido. Podia sentir isso nas vibrações no ar, no rosto pálido da moça, no estranho nevoeiro que havia tomado conta da casa na noite passada.
- Não dormiu bem? O que houve essa noite? – Insistiu a velha.
- Não sei... não me lembro. Sonhei com qualquer coisa que não consigo lembrar. Só sei que meu corpo está doído e a cabeça parece que vai arrebentar!
- O nevoeiro... Você viu? Nunca vi nevoeiro nessa época do ano. E esses arranhões nas tuas pernas e braços?
- Não entendo. Ontem quando me deitei não havia essas marca! – Disse a moça olhando para seus braços onde vergões vermelhos, como garras apareciam de cima a baixo. A mãe benzeu-se. A voz tremeu e saiu baixa quando falou:
- De certo foi raptada por um íncubo.
- Os anjos do diabo? Deus-me acuda, mãe!
- Por via das dúvidas corra, vá se lavar. Ande, menina vai tirar essa roupa para ser queimada! Vou preparar um banho com ervas Cordão de São João, que é para você não ficar mulher do príncipe maligno!

A velha colocou para cozinhar, numa grande panela de ferro enegrecida pelos anos de uso, ervas de cheiro. Naquela região longíngua, árida, onde os ventos uivavam amedrontando os que dormiam, as coisas mais estranhas aconteciam sem levantar maiores admirações. A própria vida era estranha, com a solidão das pedras que tomavam toda a extensão do lugar, até onde os olhos e as pernas agüentassem ver ou andar.

Suspirando, ajudou a filha a banhar-se. Mais uma se tornaria mulher dos seres da noite, sabia que de pouco valeriam as ervas. Suavizariam os ferimentos, mais nada. Suspirou novamente enquanto ateava fogo nas vestes da moça e lembrava-se de antigas imagens com seres selvagens e estranhos lhe visitando em noites de nevoeiros. (do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

STANISLAU

Afastou-se da janela onde observava a noite abafada da cidade. Como um céu de estrelas na terra, as luzes explodiam por todos os cantos lá em baixo, provocando-lhe vertigens.
O apartamento pequeno lhe pareceu menor ainda com a solidão que lhe amarrava o peito até faltar o ar. Morava só como só foi toda a vida. Nunca conheceu a família. Costumava dizer, em tom de gozação que não nascera, surgira por encanto como obra mágica da varinha de condão de alguma fada madrinha. Quando era jovem alguns homens se aproximaram, nada de especial. Trabalhava demais para lhes dar atenção.
- Uma mulher sozinha não pode se dar ao luxo de não guardar algo para o futuro. - Repetia isso a todos e para si mesma à procura de certezas que não tinha. Do futuro, que logo chegou, apenas um apartamento sala-quarto espremido entre dezenas de andares com vista para outros prédios, uma pensão de aposentadoria magra e muita solidão.
Ganhou um gato de uma amiga dedicada num natal. Stanislau, foi este o nome que batizou o gato preto de rabo peludo, que se engrenhava entre suas pernas miando sensualmente.  Adquiriu o hábito de assistir televisão escovando o pelo sedoso de Stanislau. O gato ronronava prazeroso se enroscando ainda mais no seu colo. Dormia com ela na cama estreita e a acordava de manhã cedo com lambidas quentes e suaves.
Uma noite sonhou com Stanislau virando homem. Um homem galante, de casaca preta que lhe beijava a boca com uma língua áspera e morna, deixando-a envolta em nuvens de desejo. Acordou acariciando o gato e pensando no quanto seria bom se ele realmente se tornasse um homem.

Obsessão passou a ser o desejo de ver Stanislau humano. Ouvira falar em magias capazes de transformar algo em outras formas. Mas como adquirir tal poder? Stanislau parecia compreender seus pensamentos e esfregava-se em suas pernas, produzindo intensas ondas de calor pelo corpo.
Passou a frequentar livrarias especializadas em ocultismo. Comprava, lia, às vezes dando crédito, outras não, livros raros e estranhos. Certa vez comprou um sobre alquimia e o poder da transmutação da matéria. Leu-o com avidez.
- Se no passado os alquimistas mudaram formas da natureza por que não conseguirei? Se perguntava vez por outra. Comprou os mais variados apetrechos. O que não encontrava, de acordo com a prescrição do livro, improvisava. O apartamento transformou-se num laboratório medieval, filtros ebulindo em vasos transparentes, fórmulas, poções. Stanislau passeava por entre velas e unguentos com naturalidade e prazer.
Numa madrugada, depois de muitos anos de buscas, achou a fórmula molecular da transmutação. Preparou o cenário. Aquele seria o dia. Colocou Stanislau dentro de um círculo de velas amarelas, enquanto ela invoca o nome de um deus antigo das primeiras civilizações, que iria auxiliá-la no processo. Lambuzou o gato com uma mistura fétida de ervas e dejetos decompostos, a representação simbólica da transformação das moléculas.
A luz transparente da lua cheia canalizada e ampliada através de espelhos côncavos, banhava o corpo do felino com raios brancos, vitais. Ela de olhos fechados procurava unir a força do seu pensamento com a energia mística que tomava todo o recinto. Por horas manteve-se em meditação. O corpo formigava, não mais sentia os membros, era apenas um jato de energia bailando sem matéria, invadindo recantos, ligando-se ao corpo do animal.
Nunca descobriu se apenas adormeceu ou desmaiou. O dia estava claro quando foi acordada por mãos fortes, acariciantes. Abriu os olhos, um cansaço quase mortal tomou-lhe o corpo e alma. Um homem sorria-lhe, imensa boca vermelha de dentes pontiagudos, cara peluda, quase um felino.
(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)



DJINS


“Alá, segundo a tradição islâmica, fez os anjos de luz, os djins de fogo e os homens de pó. Há quem afirma que a matéria dos segundos é um fogo escuro e sem fumaça.” - ( O Livro dos Seres Imaginários – J.L.Borges)

Os campos sumiram. Escuridão completa. Impressão de se estar a muitos metros abaixo da terra, numa espécie de dimensão por onde se podia caminhar sem tocar em nada. Nem paredes, nem teto, nada, vazio completo talvez como a própria morte. Apenas um cheiro úmido de terra molhada e uma escuridão quase que total. Procurou acostumar os olhos ao escuro para descobrir onde estava.
Mas tudo continuava tão estranhamente desmanchava-se ao menor toque da mão. Estava quase para gritar quando uma estranha forma surgiu. Era tão irreal quanto o próprio momento que vivia. Transparente, parecendo um corpo humano dissolvendo-se numa nuvem brilhante, apenas os olhos, como fogo, brilhavam irônicos.
- Quem é você? – Perguntou aflita. Não houve resposta. A forma continuava imóvel, olhando-a como uma esfinge. Por mais que se esforçasse não conseguia lembrar-se de como fora parar naquele lugar. A última coisa que recordava era que estava na janela do seu quarto repleto de bonecas coloridas, as bonecas que tanto amava, companheiras de uma vida, presentes de muitas datas boas. Gostava de ficar olhando as sombras que a noite tecia junto às árvores, brincando de ver fantasmas entre as formas que as manchas produziam.
- Sou um djim – respondeu finalmente o ser.
Um arripio vindo da alma subiu-lhe o corpo. Havia sido raptada por um djim. Sentiu-se perdida. Lembrou-se das inúmeras estórias que ouvia da avó ainda criança, embalando-se em redes armadas no alpendre da casa, quando a velha numa voz arrastada contava as mais horripilantes descrições sobre esses seres, gênios do fogo, protetores dos feiticeiros e bruxas. Segundo a velha avó, os djins costumavam raptar seres humanos para se alimentarem de suas energias, sugando-as ate o corpo virar pó e a Essência Divina transformar-se num deles, que acasalados viveriam eternidade. Nunca acreditara muito nas lendas, até aquele momento.
Tentou correr, fugir daquele lugar, voltar para seu quarto, suas bonecas. Tudo se dissolvia ao menor toque. Parecia não haver nem entrada nem saida. Por fim, cansada, caíu de joelhos e ficou orando pedindo proteção para sua alma. Entre as lágrimas que lhe banhavam rosto viu a forma etérea movendo-se em sua direção e envolvê-la num abraço transparente. Sentiu-se fraca tonta, com as forças vitais exalando-se.
O djim murmurava palavras num dialeto não compreensível e as últimas lembranças de um campo dourado de milhos desabrochando, do cheiro doce de terra, do sol levando o dia à espera da noite, pouco a pouco sumiram para dar lugar a uma escuridão sem visão ou lembranças.
(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

quinta-feira, 21 de abril de 2011

MELINA (conto)


Afastou-se decidido das câmaras de torturas e de cheiro de carne queimada. Lá fora, um regato vindo das montanhas trazia o cheiro doce das ervas e hortaliças frescas. Pensou nas vidas que se findavam nos subterrâneos das prisões fétidas. Jamais veriam as águas límpidas do regato. Respirou fundo. Abismos profundos dentro do seu peito abrigavam seus medos. De onde estava também podia ver a cidade rompendo o céu que lhe servia de teto.

As plantas cresciam ao redor da cidade e nuvens se aproximavam, tentando sombrear a terra da luz e do vento. Respira novamente profundo, precisava voltar. A mulher, ainda jovem, jazia acorrentada sobre a pedra negra. Procurou reanimá-la. Sua confissão não estava completa e o tempo escoava rápido. Jogou água fria em seu rosto e lembrou-se do regato que vinha das montanhas. A água lavou as feridas sangrentas que se abriam como flores vermelhas e as lágrimas secas do rosto encovado. Ela não se mexeu. Pensou aliviado que finalmente ela estava morta. Porém, gemidos fracos mostraram-lhe o contrário.
- Vamos, Melina, vamos! Você ainda tem muito o que falar... – Repete a frase varias vezes. É o encarregado das confissões pelo Santo Oficio. Sente orgulho do seu trabalho, mas o ódio resgatado em muitos séculos de dogmas religiosos, lhe incomoda.
A mulher não abriu os olhos. Passou a língua pelos lábios ressequidos, querendo observar gotas da água que lhe escorria pelo rosto.
- E então, Melina? Quem é o pai da criança? Diga, diga!
- Meu filho não ...tem pai...
- Ora vamos, todo mundo tem pai, Melina. Até uma bruxa maléfica como você teve um!
Novamente esquentou o ferro até ficar em brasas, colando-o em seguida no corpo da mulher, que gritou alto.
- Ah, ainda tem forças para gritar? Então não está tão mal assim. E por quase meia hora a sessão de tortura com o ferro em brasa e a cadeira de rolar, que puxava os braços para cima enquanto os pés permaneciam amarrados ao chão, foi repetida sem tréguas, findando com o cansaço do algoz e o desmaio da mulher. Seu corpo era agora um emaranhado de sangue e pedaços de carnes soltas.
Um homem gordo, de aparência desleixada e suja, entra na cela.
- Como é, padre, ela já confessou o nome do diabo-amante?
- Não. Essa mulher tem mais resistências que as outras. Mas confessará. Em nome de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Salvador da humanidade, ela há de confessar, e eu vou acabar com essa raça lasciva das malditas bruxas! – Fala o jovem padre, enquanto o suor escorreu-lhe pelo rosto avermelhado de emoção e calor. Reaqueceu o fogo, assoprando as brasas que se confundiam com os ferros da tortura.
- Eu acho que ela não vai agûentar não, padre. Se passar desta noite, é para morrer de madrugada.
- Creio que não. Essa prostituta da Babilônia não morrerá enquanto não confessar o nome do demônio que acasalou com ela, para gerar aquele... aquela criança!
- Olhe padre, a bruxa está acordando! – Grita o gordo.
A mulher abriu os olhos com dificuldade, fixando-o padre.
- Eu quero... meu filho.
- Pois diga o nome do pai dele.
Melina vagueou o olhar pela cela escura, cheia de recantos ensombrados. Por mais que se esforçasse não entendia o porquê de estava ali, sendo torturada. Lembrou-se que lá fora o inverno deveria estar começando e os pingos da chuva estariam queimando as folhas secas e amareladas das árvores. O vento frio que descia da encosta estaria mais frio ainda, obrigando os Elfos e Gnomos a se esconderem nos troncos das árvores ou debaixo das pedras. Lembrou-se ainda de Croak, um ser das entranhas da terra, por quem se apaixonara. Mas como explicar ao padre que ele não era um demônio?
- Padre, queime o rosto, ele ainda está limpo. – Sugere o gordo capitão da Guarda Imperial.
- Não, não. Primeiro apenas o ventre e o sexo, que são os mistérios das mulheres. A tentação que perverte os homens desde Lilith e Eva, as perseguidoras do pobre Adão!
Melina parecia não mais sentir o ferro que lhe arrancava a carne dos ossos. O único desejo era conhecer o filho, antes de partir para o mundo encantado do qual falava Croak, onde o mel jorrava das árvores e todos dançavam e cantavam durante o dia, e as noites eram tão claras que não se precisava do fogo, e dos rios corriam perfumes gloriosos. Tentou sorrir, mas a imagem da tia, a beata velha e melancólica com quem morava, entrava nas visões do mundo encantado, lhe estragando também este prazer. Deveria estar contente agora, pois tão logo soube da gravidez, denunciou-a ao padre da vila:
- Ora padre Lóscio, ela nunca andou com homem, isso não! Se estar grávida, o pai só pode ser um dêmonio!
- Pode ser, dona Maroquinha. Porém não temos certeza.
- Como não? Ela passava os dias andando pelas montanhas. E sempre sozinha. Eu acho que Melina é uma bruxa! Eu já não lhe contei de como ela me curou, a perna inchada? Um piscar de olhos e lá estava a perna curada. Disse que foi ajudada pelos devas da natureza, que nada, foi pelo demônio, isso é que sim! Que Deus me perdoe, é minha sobrinha, mas sempre a achei estranha. Esse cabelo quase branco de tão loiro! E mais parece uma anã de tão pequena!
Meses depois Melina pariu, entre os olhos de pavor da tia e o enojado padre. Foi levada para a masmorra no subterrâneo da igreja, sem ao menos conhecer o filho.
- Padre, em nome de Deus...me deixe ver a criança.
- É, provavelmente tua memória refrescará quando conheceres a criaturinha que botastes no mundo. Capitão José, traga a criança.
Minutos depois, o homem gordo retornou com um pequeno embrulho de panos. O padre abriu as correntes e ela com esforço recebeu o filho. Miúdo, quase do tamanho da palma de sua mão, a criança tinha olhos escuros que combinava com a tez morena cor de terra, as orelhas pontudas lembrando-lhe Croak.
Num gesto rápido, Melina devorou o pequeno ser e saiu voando por uma fenda da ventilação do teto da cela.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE (conto)

                                          "Forte angústia produzem-me os suspiros,
Quando a razão me traz à mente triste
Aquela que partiu meu coração;
E, pensando na morte, muitas vezes
Dela me vem desejo tão suave,
Que se transmuda a cor do meu semblante.
E, quando o meu delírio é muito intenso,
Tão profundo desgosto me domina,
Que até desperto pela dor que sinto,
E me transformo tanto,
Que das gentes me afasto de vergonha.
Depois, chorando, só, no meu lamento,
Chamo Beatriz e digo: ‘Estás tu morta?’
E, enquanto assim a chamo, me consolo!"

     O angustiante grito poético de Dante o atormenta ainda mais. Joga o livro contra a parede. As lembranças assombram seu dia. Conheceu Lucrécia nas suas idas e vindas da escola. Gostava de espia-la passar encostado no parapeito da sacada de seu quarto, onde ficava olhando o movimento da rua ao amanhecer. Era bucólico, um renascer de vida. As pessoas passando ainda com os olhos inchados e cheiro de café, subindo a ladeira devagar.

     A princípio, Lucrécia era uma dessas pessoas. Ficava observando o movimento de seus cabelos presos num “rabo de cavalo” com fitas coloridas, o andar meio saltitante de menina quase mulher, a curva dos seios despontando... Não se lembrava de quando começou a se apaixonar. O certo é que a cada dia ficava mais ansioso esperando sua passagem. E talvez por tanto o ver, ela começou a cumprimenta-lo com um bom-dia suave, ligeiro e tímido. Ah, e como ele passou a esperar com ânsia esse cumprimento! Era sem dúvida o evento mais importante do seu dia. Um cumprimento formal, frio, mas que o permitia ouvir sua voz.

     Era um homem de quase sessenta anos, aposentado e solitário. Lucrécia acrescentava luz a sua cinzenta vida. Por isso, querendo se aproximar dela, passou a lhe dar uma flor recém-colhida a cada manhã, de seu jardim. Meio encabulada, e às vezes vacilante, ela recebia com um “muito obrigada” e assim, pouco a poucos ele começou a ganhar sua confiança. Às vezes ela parava e perguntava como ele estava ou qualquer coisa assim.

     Um dia a convidou para jogar damas. Ela veio e jogaram até quase o anoitecer. Veio outras vezes, conversavam banalidades. Tinha quinze anos, morava só com a mãe e era apaixonada por um namoradinho na escola. Ele sentia ciúmes ao imaginar alguém lhe pegando as mãos, beijando seus lábios rosados com cheiro de saliva sadia, quase infantil ainda. Em suas fantasias ele a imaginava deitada em sua cama, nua, encoberta por lençóis que revelavam suas formas ainda sem contornos definidos, de quase uma mulher.

     O desejo de tomá-la para si foi aos poucos lhe embargando a razão. Decorou um quarto que ficava nos fundos da casa, longe da rua, com flores brancas, cortinas rosa, bonecas e bibelôs de porcelanas. Tudo que, na sua cabeça de homem maduro e sem filhos, achava ser do gosto de uma menina quase moça. Quando não estava jogando dama com Lucrécia ou esperando-a na sacada, ele ficava no quarto de cortinas rosa fingindo tê-la ao meu lado, masturbando-se como que a possuindo.

    A concretização de suas fantasias, ou pelo menos parte delas, aconteceu por puro acaso sem arquitetações prévias. Era uma tarde quente e ele estava lendo, logo após o almoço, quando ela entrou em prantos contando que haver brigado com a mãe e pedindo para ficar com ele por uns dias. Quase enlouqueceu de alegria, mas ocultando seu entusiasmo procurou convencê-la a voltar para casa. Lucrécia estava irredutível. Ele então a levou para o quarto dos fundos, o quarto rosa que havia decorado pensando nela. Lucrécia ficou maravilhada e o fez jurar que não contaria a ninguém que estava lá. Jurou.

   Suas noites passaram a ser um inferno. Ouvia, ou imaginava ouvir, a respiração suave de Lucrécia por trás das grossas paredes, deixando-o trêmulo. Passava as noites de vigílias à porta do quarto lutando contra a fome bestial de seus instintos. Sua consciência, ou o que restava dela, mandava-o devolver a menina aos familiares. Mas quando a olhava, o jeito, o cheiro, a alegria jovial que lhe devolvia sonhos e esperanças, coisas esquecidas no passado, mudava de idéia.

    Custa lembrar-se daquela noite. O remorso e o desejo lhe tomam o corpo com a mesma intensidade... Acabaram de jantar. Lucrécia estava pálida pelos dias de confinamento no quarto. Perguntou se ela desejava voltar para casa. Respondeu que não. Insistiu. Disse então que desejava ficar morando ele e o abraçou. Tonto com a aproximação e mesmo sabendo que o abraço era de amizade, ele fechou os olhos e fingiu ser amoroso. Correspondeu o abraço, só que de forma diferente. A envolveu em seus braços procurando senti-la sensualmente. Surpresa e meio incomodada, Lucrécia procurou desvencilhar-se. Porém, ele já não estava em si. Desejos lascivos matavam qualquer senso de racionalidade. Abraçou-a mais ainda tentando beijá-la. Em pânico ela debatia-se lutando como animal tocaiado. Tampou sua boca com violência para não gritar e a arrastou para o quarto.

    Acordou no outro dia extremamente cansado, sem saber direito o que havia acontecido. Ao seu lado, imóvel, Lucrécia estava horrível. Rosto inchado, coberto de sangue. Corpo nú, cheio de hematomas. Procurou reanimá-la, não reagia. Horrorizado, percebeu que ela estava morta.

   Chorou e enlouquecido pegou a arma que guardava na mesinha de cabeceira. Iria suicidar-se, não suportaria viver sem Lucrécia. Covardemente não apertou o gatilho nas diversas tentativas. Por fim, adormeceu novamente. Levantou-se noite escura. O corpo de Lucrécia ao seu lado parecia talhado em cera. Qualquer coisa naquela rigidez o fascinou e sem perceber o que fazia, novamente possuiu o corpo, agora morto.

   Sem coragem de desfazer-se de Lucrécia, ele lavou cuidadosamente seu cadáver e o deixou como que dormindo sobre a cama de lençol rosa-pálido, onde mais uma vez o amou. A frieza da morte, a rigidez da carne o excitava ao ponto de nunca ter imaginado que pusesse haver tanto prazer.

    Um novo ritual se instalou em sua vida. Todas as noites ele ia ao quarto de Lucrécia e mesmo com o corpo se decompondo, ele o possuía com a mesma paixão. Não se importava de fazer amor com um corpo putrefato. Nem o cheiro ou a pegajosidade das carnes que se soltavam dos ossos lhe importava. Ao contrário, quanto mais apodrecido mais paixão o corpo me despertava.

    Vez por outra alguns sentimentos de arrependimento apertavam seu coração por ter tirado a vida daquela criaturinha tão linda e jovem. Porém quando pensava no prazer que sua morte lhe trouxe, na forma daquele corpo rígido, decompondo-se dia a dia, sabia que faria tudo novamente.

     Ao sair do quarto de Lucrécia recita novamente a poesia de Dante, numa louca expiação de seus desejos:

“ Vinde, vinde os suspiros meus ouvir,
Ó corações gentis, penalizados:
Se não partissem, tão desconsolados,
À dor eu deveria sucumbir...”

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

domingo, 6 de março de 2011

PEQUENOS GESTOS DO COTIDIANO BURGUÊS (conto)

  (Conto do livro "As Várias Maneiras de Amar" - Isa Magalhães)
       A mesa estava posta. Talheres de prata, pratos brancos, guardanapos brancos, tudo como Alberto gosta.
     - O jantar está na mesa, querido! – A voz soa em falseta, talvez pelo medo de interromper o marido no escritório. Olha em volta, a casa antiga, os móveis herdados de tantos avós que não sabia o que pertencerá a quem, a tradição. Respira fundo ajeitando a gola de renda do vestido cinza, meio abafada pelo colar de perolas e talvez pelas lagrimas engolidas. Quarenta e cinco anos de casada, três filhos, cinco netos... Lembra de Albertinho, o filho mais velho. O peito ainda doí quando a cena da confissão, como o filho chamou, vem a sua mente como um filme em branco e preto. Era o jantar das quintas-feiras, quando reunia toda a família.
    - Queridos pais, querida família, tenho uma confissão muito importante a fazê-los... Eu sou gay! – Albertinho abre um grande sorriso como para amenizar suas palavras.
     - É mesmo filho, e desde quando? – Pelo tom da voz de Alberto – o pai, via-se que não tinha acreditado na confissão do filho.
   - Pai, eu sou GAY! E estou casado com André desde maio. – André, o amigo de todas as horas estava branco, e parecia que ia afundar mesa abaixo diante do olhar de todos.          
   - Pouca vergonha! Safadeza! Não admito isso na minha família! Retire-se da minha casa imediatamente seu... sua aberração! – Os gritos de Alberto ecoaram como urros de  animal ferido. Dor, decepção, vergonha. Todos os sentimentos podiam ser vistos no rosto do velho homem.
Ela, parada, perdida, apertando a gola do vestido chorando num silêncio de mãe. Olhava para o filho procurando entender o que ele dizia. “Como casado? Eram dois homens! Isso vai contra as leis de Deus!”.   
 Depois desse dia Albertinho nunca mais telefonou, nunca mais se ouviu seu riso alegre que aquecia a casa ancestral. Sabia que estava bem pela faxineira que compartilhavam. “Ah, o Dr. Albertinho tá muito bem mais o Dr. André. São tão amigos....”. E contava num tom meio petulante, de intimidade, como eles adoravam receber os amigos, que quase todo dia tinha um jantar onde só iam homens e era um trabalhão arrumar tudo no outro dia.
    - Perdidas em pensamentos, querida? – A voz do marido lhe assusta um pouco. Ele agora deu para dizer que só tinha dois filhos e que o mais velho tinha morrido. Seu coração se aperta ao olhar os olhos azuis do marido. Tão amado! Nem parece que já estão juntos há tantos anos. Se não fosse o gênio tirânico do marido, poderia dizer que sua vida era perfeita.
    - Oh, querido, nem notei você entrando... Não, estava só lembrando que temos convidados para o jantar na sexta-feira.
    - E esses olhos lacrimejantes? Você não me engana, querida. Pensado naquele... Você sabe em quem! – Ele não ousa nem a pronunciar a palavra filho, ou dizer o nome, que era o mesmo que o seu.
     Ele amava a mulher mais que qualquer coisa. Conheceram-se num final de semana na casa de amigos e nunca mais se separaram. Havia jurado, aos pés do padre, ama-la e respeita-la e tinha feito isso por quase cinco décadas, mas perdoar o filho jamais! Além do mais, o culpava pela doença dela.
    Logo após a confissão, Ana Amélia adoecera. Primeiro uma dor no braço, que evoluiu para uma dor nas costas, e finalmente descobriram o maldito câncer no pulmão esquerdo. Foi à tristeza, tinha certeza disso. Sabia que ela morreria em breve, mas não agüentava pensar nisso. Não agüentava pensar na vida sem o sorriso meigo, a paz que a presença de Ana Amélia lhe transmitia.
     Sabia que depois do jantar passeariam pelo jardim bem cuidado, tomariam vinho sentados no banco de madeira perto da capelinha de Santa Edwiges entre roseiras brancas, e relembrariam o passado. As viagens, as festas, as histórias engraçadas dos netos. Nesses momentos, a vida passava como gotas homeopáticas, suave, quase como um suspiro. E ele queria assim, para perpetuar o sabor do encontro, eternizando a vida nos pequenos gestos do cotidiano. Ao deitarem, dormiriam de mãos dadas, um velando o sono do outro, como bons cristãos... Mas perdoar o filho? Nunca!

(do livro “As Varias Maneiras de Amar” – contos - 1999, Fortaleza/Ce)

A FACA DE CORTA BIFES (contos)

        Banhado de sangue e areia, o corpo está inerte e frio pela morte. Lentamente, os primeiros raios do sol clareiam a praia deserta e o corpo de Ester. Um vento leve, suave, brinca com os longos cabelos loiros esparramados na areia. Ester... Quem foi Ester? Quem matou Ester?
         Ester foi uma menina branca, quase de neve, alegre, mulher livre, solta. Ester foi louca, consumindo-se no desejo de liberdade, mas reprimida num universo introvertido, só seu. Ester foi gente, amante sofrida, amada e abandonada. Ester sonhava em ser pássaro voando no céu azul e infinito.
         Ester o encontrou numa palestra de literatura inglesa. Palestra cansativa, longa. Olhou em volta entediada, disfarçando o bocejo. Encontrou uns olhos escuros, tristes, num rosto nem jovem nem bonito nem feio. Um sorriso, um gesto, trocaram telefones. Encontraram-se no outro dia. Conversa agradável, solta, inteligente. Ester enamorou-se, ou quis enamorar-se, quando fizeram amor sobre a cama barulhenta de colchão de mola antigo, num apartamento pequeno e sujo, onde ele morava. Era professor de inglês, tinha 40 anos e dizia não querer casar. Ester perdia-se nos olhos escuros do professor e sofria com o descaso deles. Ele era evasivo, frio, distante. Ester queria conhecer seus segredos e torturava-se num mar de ciúmes pavorosos. Mas Ester era pássaro leve, cansou-se.
      Um dia, noutra palestra, agora de literatura francesa, deixava-se seduzir pelo lirismo de Balzac e encontrou um sorriso alegre e travesso. O coração balançou e Ester reconheceu o velho sentimento de embriagues diante da paixão. Jantaram sanduíche de mortadela no bar da faculdade, andaram de mãos dadas e fizeram amor no beliche da pensão onde ele morava. E Ester envolveu-se com o estudante de filosofia, pobre e sedutor.
       O professor sentiu a mudança e enamorou-se tardiamente, Ester pássaro solto voou. Enlouquecido, corroendo-se de ciúmes, arquitetava conquista-la novamente ou vingar-se! Convidou-a para jantar. Ester romântica aceitou, queria matar as saudades. Com mania de mulher fatal, vestiu um longo preto, insinuante e chegou envolta num sorriso de lábios vermelhos. Jantaram comida portuguesa e tomaram vinho que borbulhou deixando Ester tonta e faminta de desejos pelo professor. Fizeram amor preguiçosamente e quando ele foi deixa-la em casa, Ester sugeriu um passeio pela praia, para sentir o cheiro do mar.
      No caminho, conversa vai e vem, o professor pergunta pelo novo namorado. Ester alegre e sem malícia, fala abertamente do adorável e jovem estudante, e de como era bom estar com ele. O professor escuta tudo roendo de dor. Na praia, madrugada fresca, ondas barulhentas batendo na areia branca, Ester criança brincalhona se solta na escuridão da noite, dançado ao som das ondas. O professor observa, e sem poder conter-se mais, violento e passionalmente penetra a faca de cortar bifes, nas costas de Ester. A mesma faca que tantos bifes cortou para Ester e que agora lhe corta as carnes marcias.
       Sol alto, dia claro. O mar lambe sensualmente o corpo largado de Ester, observado pela polícia, fotógrafos e curiosos. E Ester, amante da vida e dos amores, vira notícia de jornal.    
(conto publicado no livro "Psiu o Sindico pode Estar Ouvido" -1987, de Isa Magalhães)     

O SUAVE CHEIRO DAS MANGAS MADURAS (conto)


     
     A quieta noite de outubro é invadida pelos murmúrios da sala ao lado, onde Antônio está sendo velado. O cheiro adocicado das velas queimando me enjoa, assim como as rezas e as conversa dos poucos amigos que ainda estão no velório, teimando em relembrarem os bons momentos com o morto. Fico em dúvida se choro agora ou mais tarde, protegida no meu quarto.
    Toco suavemente a caderneta encapada de couro marrom guardada no bolso do casaco, sinto sua consistência macia e isso me acalma. Lá fora uma noite de céu estrelado me espia pela janela aberta da sala, dando-me a sensação de inutilidade e pequenez. Olho os retratos na mesinha ao lado da poltrona onde me encontro afundada na minha dor, e numa das fotos Antônio me sorrir alegre e jovial fazendo-me voltar para outros tempos. Nervosa, aposso-me da foto e a guardo na bolsa. Lembro novamente da caderneta. Tiro-a do bolso e a folheio discretamente, páginas amareladas pelo tempo, letras contundentes escritas com presa ou emoção... a letra de Antônio.
     Levanto a cabeça e digo para mim mesma: “o retrato e a caderneta... as minhas heranças!”. Guardo tudo apressadamente, vozes chorosas se aproximam da sala onde me encontro. Helena, a viúva gorda e sufocada num vestido cinza entra amparada pela única filha, me cumprimenta com um sorriso que lembra uma careta e senta-se ao meu lado. Quero sair correndo, voltar para o lado do caixão de Antônio. Mas não consigo me mover.
     - Perdemos Antônio, não é Laura? Perdemos Antônio... – Ela diz enquanto assua alto o nariz. Aperto-lhe a mão e saio rapidamente sem lhe dar resposta.
      Não fui ao enterro. Preferi ficar em casa olhando o retrato de Antônio e lendo a pequena caderneta de couro marrom que me foi entregue pelo melhor amigo dele - seu Jerônimo, o quitandeiro da esquina, que a mais de vinte anos vende as mangas do meu quintal. Conheci Antônio na quitanda dele.
    - Então é do seu quintal que vem o cheiro dessas maravilhas? - Perguntou-me ele num mês de janeiro de muitos anos atrás. Era então um jovem professor de longos cabelos ondulados e poeta nas horas vagas. Fiquei encabulada e sorri timidamente enquanto entregava a seu Jerônimo o cesto repleto de mangas. Ele pegou uma das frutas, a mais redonda e rosada, cheirou-a e disse sorridente:
    - O cheiro doce de uma manga madura desperta sonhos e misteriosos... É como tocar nos seios macios de uma mulher... - Vendo meu embaraço, ele se desculpou. – É que enlouqueço quando tenho uma dessas gostosuras nas mãos. Obrigado, muito obrigado por cultivar mangas!
     Ri do seu jeito alegre e franco e nos tornamos amigos. Era recém-casado e sua mulher esperava o primeiro filho. 
       Passou a me visitar quase todos os fins de tarde, após o trabalho. Conversamos sobre tudo enquanto tomávamos refresco de manga. Acostumei-me com sua presença cheia de poesia e anseios. Sentia falta quando por um motivo ou outro não aparecia. Não lembro quando comecei a me apaixonar por ele. No princípio escondia os sentimentos até de mim mesma. Depois, quando finalmente admiti está apaixonada, vivi momentos de verdadeiro inferno com medo de ele perceber meus sentimentos. Respeitava nossa amizade e não queria constranger Antônio. Passamos anos e anos nos vendo quase todos os dias, conversando sobre poesia, livros, sonhos, seus medos e projetos, tudo como dois bons e fieis amigos.  
  Andando pela sala onde costumávamos ficar, penso como será a vida sem Antônio. Sei que terei de continuar apesar da falta, mas será muito difícil! Ele era um ponto de referência na minha vida. Sem ele é vazio, falta, solidão. Leio mais uma vez a caderneta que ele me deixou. Um riso nervoso se apodera de mim. Ouço o som da minha risada e quero ficar assim pelo resto da vida. Que vida? Minha vida era os fins de tardes com Antônio, quando cada poro do meu corpo ficava alerta, esperando o contato delicado e furtivo das suas mãos encontrando as minhas casualmente. Ou seu beijo leve no meu rosto, quando se despedia.
 Meu coração batia apressado quando sentia o cheiro da sua colônia misturada ao hálito cheirando a mangas. Sei que o amei com o coração de uma mulher solitária e madura... Tão madura como as mangas do meu quintal, prontas para serem colhidas e devoradas.
 Escuto meio distanciada uma voz rouca, a minha voz, lendo selvagemente aos berros, para que as paredes brancas, os móveis e os objetos daquela sala - únicos testemunhos dos meus delírios, escutassem pela primeira vez as confissões de um homem que assim como eu, passou a vida se escondendo.
  “Não tenho esperanças. Ela jamais me olhará como homem. É leal demais a nossa amizade para me deixar entrar na sua vida de outra maneira. Ah, meu Deus, e como eu a desejo! Como desejo tocar seu corpo, beijar seus seios rosados como as mangas que me presenteia...”

(do livro “As Várias Maneiras de Amar” – contos - 1999, Fortaleza/Ce)