terça-feira, 31 de janeiro de 2012

MEU AMOR VIRTUAL


                                                             
A madrugada entrava suave pela janela aberta e ela parada em frente ao computador há horas, não prestava atenção ao tempo. Perdida entre divagações, sonhos, desejos e fantasias, teclava com seu amante virtual. Conheceram-se há alguns meses...Isto é, se conheceram virtualmente. Nunca se viram, nunca se tocaram, não sabia do cheiro ou do gosto um do outro, apenas as palavras construíam a paixão.
Uma paixão que a deixava acordada imaginando-o. Era assim que ela queria. Pelo menos dessa forma eles se perpetuariam na galeria da perfeição. Mas também isso era uma violência com o seu corpo, que estava faminto por uma boa noite de amor. É tão difícil confessar isso. Ela não falava disso com ele, afinal expor as nossas feridas para outros é mostrar nossas fragilidades, e não gostava de ser frágil.
Ao mesmo tempo pensava: “mas os outros também as têm, ou poderão tê-las”. Mas não queria se expor, se mostrar, carne ardente, ferida de tempo e solidão. Não somos o que somos e sim o que pensamos que somos, dizia para si mesma. Essa possibilidade de existirmos apenas em nossas crenças doía sua sensibilidade. Queria certezas que não existia. Afinal, ser alguém exigia uma identidade constante, cheias de regras socialmente impostas e ela não queria pagar este preço. Tinha cinquenta anos, morava sozinha, era funcionária publica concursada – e muito se orgulhava disso. “Entrei pela porta da frente!” – Repetia constantemente para os colegas terceirizados, vagas conseguidas por algum politico.
Por distração começou a frequentar as redes de relacionamento, página feita com uma foto de 20 anos atrás, falando de coisas que nem de longe falaria no seu dia a dia. Quando o conheceu seu mundo virou. Da segura rotina passou a ansiar pela noite, perdidas entre teclas e luzes do monitor do computador, horas que lhe custava um acordar saudável. Afinal, dormia pouco para poder ter mais tempo com ele.
Aqueles momentos passaram a serem os mais significativos de sua vida. Ele não a enganou, era casado, pai de três filhos adultos e vivia muito bem com a mulher. Ela era o seu amor virtual, era especial, inatingível, princesa cibernética encantada. Como poeta menestrel ele ansiava por uma musa, pela inspiração perfeita que só existe nos sonhos de um homem de meia idade.  
Naquele domingo ficaram se comunicando até quase o amanhecer. A mulher dele estava viajando e eles tinham maior liberdade. O sexo virtual foi divino. Ela se masturbou entre palavras nunca pronunciadas na vida real. Cinco horas da manhã, o sol quase nascendo lhe encontrou confusa, reflexiva, alma atormentada. Passava as mãos pelos olhos tentando se reconhecer. Tomou banho, vestiu uma camisola leve e foi para a cama. Teria o dia inteiro para procurar algum ponto seguro nesse novo momento que vivia. Não havia. Teria que olhar a cara desse outro eu que acordou passional, felino, selvagem. E assustador! Cinquenta anos tentando se esconder, fechar seus desejos que poderiam corromper sua dignidade.
E agora este caso virtual arrancava suas máscaras. Gostaria de ter outra identidade? Perguntava-se quase febril. Ela já estava em outra identidade. Como seria este outro alguém desconhecido que mora dentro dela? Seus questionamentos continuavam e ela não conseguia dormir. Será que a sordidez me atrair a este ponto? Serei vítima ou algoz nesta nova vida que tenho? Como viverei com essa duplicidade? De dia seria a funcionária pacata, senhora quase ingênua. À noite a fêmea fatal, mulher capaz de matar ou morrer de paixão. Onde estava seu verdadeiro eu entre essas duas personagens?
Quase em pânico resolveu que só teria um jeito de não enlouquecer: conhecer João Paulo, o amante virtual. Diante da agonia de ser um camaleão de múltiplas faces, conhece-lo seria uma maneira de encontrar o equilíbrio. Mas como fazer isso? Não tinha seu endereço, contato, nada. Apenas um e-mail e a página na internet. Pela sua sobrevivência teria que conseguir maiores informações.
Pela conveniência, João Paulo havia lhe dito que jamais se conheceriam. Ao se conhecerem o encanto se desfaria e eles seriam simples mortais, amantes que brigam enlaçados em pensamentos egoístas, cheio de sentimentos mesquinhos e pobres. Por sua vontade, não. Ela queria mesmo era um amor de verdade, olho no olho, mãos dadas, cinema das 23 horas, assim como as amigas. Saudades dos tempos passados, juvenis, onde namorava agarradinho, sentindo o coração do outro. Por que a vida só lhe mandou isso?  
Mas também sentia medo do sonho se transformar em pesadelo ao se transpor em realidade. Não gostava da realidade... ou melhor, da sua realidade, onde seus gritos de solidão eram ouvidos apenas pelo silêncio. Um silêncio que ensurdecia. Por isso, fugia da sua vida para tentar viver outra vida. Uma vida virtual, outra realidade que a atirava numa condição marginal, perdida numa imaginação feita de enquadramentos e sonhos.
Naquela manha acordou decidida. “A única razão deixar este homem na minha vida é tê-lo como um espelho, onde eu possa contemplar meus anseios do passado.”. Com este pensamento vestiu uma blusa rosa e uma calça branca e partiu meio sem rumo. Queria encontrá-lo, mas onde? Lembrou-se dele ter lhe dito que trabalhava num prédio no centro da cidade. Rumou para lá guardando na memoria o rosto dele preso no retrato da sua página social.
A memória fazia círculos na sua cabeça brincando de tiro ao alvo, tentando focar nos detalhes que eles conversavam. Era advogado, meia idade, cabelo quase branco, gostava de comer salada de atum com macarrão... Desceu do ônibus perto do prédio em que ele trabalhava. Caminhou de cabeça baixa pensando que agora não dava mais para retornar. Depois de marcado um encontro consigo mesma, não tem volta. Entrou no prédio e esperou. A cada porta de elevador que abria procurava o rosto dele, congelado na memória das fotos que ele lhe mandava.
Depois de quase 3 horas encontrou dois olhos frios por trás de uns óculos de aros pretos. Era ele, tinha certeza. Surpresa, aborrecimento, incômodo... não saberia dizer quais os sentimentos que lia naqueles olhos. Mas isso não lhe importava. Queria vê-lo, sentir que ele existia de verdade e só!
Chegou bem perto e disse: “sou eu!”. Ele a olhou profundamente, bem dentro de seus olhos, ao ponto dela se ver refletida nas lentes dos óculos dele, e disse: “Eu sei.”. Ela esperou pelo beijo, um abraço, um toque qualquer. Mas ele simplesmente disse: “Nunca mais me procure”. E se foi.