sábado, 5 de março de 2011

POÉTICAS NOITES DE AGONIA (conto)


- As lágrimas choradas pelas mulheres não deixam marcas no mundo... – Ela ficava repetindo a frase seguidamente como uma oração, enquanto segurava com força o terço de contas azuis transparentes.

Lá fora, um vento forte rasgando a planície silenciosa, uivando como que acompanhando seus lamentos. Estática ela esperava as mudanças que destruiriam sua vida.

- Aqui estou eu... revivendo velhos pensamentos que já não me dizem nada, mas que me mostram como as coisas deveriam ser... – Pensava em voz alta.

Encostou-se à janela de vidros imaculadamente limpos e ficou olhando a chuva cair sobre as plantas do jardim, fazendo-as curvar, molhando a terra enrugada, varrendo a poeira do verão. Além das roseiras do seu jardim, outro mundo começava na imensidão desértica da planície descampada. A primeira vez que viu aquelas terras descampadas, quase sem árvores onde pudesse se esconder ou agarrar-se, tivera medo.

A chuva diminuía e já podia ver a casa da filha, branca com telhados vermelhos. Dias atrás a filha mandou-lhe um recado avisando que o quarto estava pronto, esperando-a. Não devolveu a resposta. Por que sair da casa que há cinquenta anos a abrigava?

- Quando se envelhece perde-se tudo, até mesmo a vontade. – Falava entre dentes. Seu marido comprara aquelas terras quando se casaram. Construíram a casa numa colina alta que dominava todo o vale. Na casa tivera os cinco filhos e chorara a morte de dois deles, como também chorara a do marido, alguns anos atrás. Na casa aprendeu a tecer sua vida com paciência e resignação.

Abriu a janela do quarto. A neblina fria, resto da chuva, bateu-lhe no rosto causando calafrios. Respirou fundo. Não deixaria que a levassem da casa.

- Nessa casa construí tudo que conheço. Ela é a minha porta para o mundo real. Houve tempo em que me sentia só. As crianças haviam crescido e partido. Hugo já não estava nesse mundo e a casa parecia grande e vazia. Isso foi antes da rodovia chegar.

Quando construíram a rodovia principal perto da casa, temeu por sua privacidade. Da janela do quarto podia ver os carros que passavam e à noite os roncos dos motores despertavam-na. Quase por brincadeira uma ideia nasceu-lhe e tomou corpo. A princípio pareceu-lhe loucura, mas resolveu tentar. E uma noite, vestida numa capa branca, foi para a estrada pedir ajuda para um filho imaginariamente doente.

O motorista que lhe acudiu os chamados era de meia idade, a seguir falando dos perigos da noite para uma senhora. Tomou chá com bolachas na cozinha cheirando a limpeza, e quando perguntava pelo rapaz doente tinha a atenção desviada com perguntas sobre sua vida de viajante. Era quase manhã quando o homem descobriu a farsa. Irado chamou-a de louca e tentou agredi-la. Assustada, a faca de cozinha sempre bem amolada desde os tempos do marido serviu-lhe de arma. Um só golpe certeiro e mortal na garganta. O homem caiu debatendo-se, jorrando sangue, olhar de agonia e morte. Nunca vira cena tão dolorosamente poética. Arrastou o corpo para o celeiro abandonado perto da casa. Ele foi o primeiro, em pelo menos dez motoristas, atraídos e mortos por ela.

Quando a filha mudou-se para perto tentou livra-se dos corpos, porém, a visão daqueles restos humanos trazia-lhe imagens das noites saborosamente poéticas, onde a morte vencia o desejo de viver. Isso a deixava forte. O desejo da filha em tê-la morando com ela tirar-lhe-á a única distração. E não suportaria isso.

- As lágrimas choradas pelas mulheres não deixam marcas no mundo – repetiu pela centésima vez naquele dia, sem conseguir lembrar-se de onde leu ou ouvia aquela frase.

(do livro “O Plantador de Ossos” -1991, Menção Honrosa da UBE – Academia Brasileira de Escritores, RJ)

Nenhum comentário:

Postar um comentário