sábado, 5 de março de 2011

GEORGETTE (conto)

     Você ainda está tão presente que me custa acreditar no que aconteceu. Busco a todos instantes pequenos pedaços de tuas lembranças na planta quase morta do banheiro, que você adorava colocar na varanda para tomar sol... no vidro vazio de desodorante, na bolsa de palha jogada no quarto de despejo. São momentos que deito-me nas horas, tentando impedi-las de passar por medo de perder de vez tua memória no tempo que tudo dilui.

          ALGUNS ANOS ANTES

         Miúda, com um vestido negro a acentuar-lhe a magreza, Georgette esgueira-se pelos corredores escuros da velha casa de fazenda. De suas origens pouco se sabe. Talvez filha do velho coronel com alguma empregada, ou mesmo filha de Lauriana, a única filha dele, morta misteriosamente em Paris. Georgette apareceu por esse meio tempo e foi criada como filha. Ou quase.
        Assustada como as assombras, a menina miúda esconde-se de todos. O velho havia morrido há algumas horas. Na casa, primos, amigos, a única irmã ainda viva, todos silenciosos num respeito de medo. O corpo jazia no quarto, sobre a antiga cama de verniz escuro, com um semblante aborrecido na imobilidade da morte. Georgette sabe o quanto ele detestava casa cheia, mesmo que silenciosa. Costuma dizer que era o calor dos corpos das pessoas que lhe incomodava, e não suas vozes.
       Como o velho, ela também aprendera a não gosta de gente na casa. Sentia-se invadida nas entranhas e rezava com todas as forças para que os intrusos fossem embora. Menos ele - o sobrinho neto do velho, o mais bonito, que lhe sorriu por trás da imensa coroa fúnebre, fazendo seu coração de menina miúda bater forte. Depois do enterro, noite calma, sentados no alpendre da casa, ele pegou-lhe a mão e disse-lhe que a levaria dali no outro dia.
       Oficialmente, eles nunca se casaram. Ela passou a morar no apartamento dele, como parte de um acordo do testamento do velho. Herdaria tudo se cuidasse de Georgette. Ela fazia parte do apartamento como a coleção de biscuí chinesa tão bem guardada na cristaleira da sala. Havia muitas outras coleções como a discos antigos de cera, mas aquela era a que mais lhe chamava atenção, talvez pela fragilidade. Identificava-se com aqueles delicados bibelôs. Gostava de olha-los, mas de longe, com medo de quebra-los. Será que era assim, que ele a via. Pensava Georgette, quando se lembrava dos carinhos rápidos e desajeitados, do rapaz.
      Os dias eram vazios, passados entre os dois quartos e sala com vista para um viaduto e uma bela praça. Às vezes, distraía-se contando as pessoas que passavam apressadas, lá embaixo do prédio. Ou cozinhando complicados pratos retirados de um livro de receitas orientais, para o almoço. Em vão esperava-o, quase nunca almoçava em casa. Ela também quase nunca saia. Eram solitárias noites onde tricotava delicados pulôveres brancos, feitos e refeitos entre suspiros e lágrimas quentes. Ansiava pelo amor do homem que havia lhe tirado da quietude da casa do velho, sem entender qual era o seu papel na vida dele. Sentia-se esposa, mas nunca estava com ele, nunca conversavam.
       Pediu-lhe um filho numa madrugada de sexo rápido e frio. Não gostava de crianças, foi à resposta dele. Eram chantagistas e buliçosas, na certa quebrariam suas preciosas antigüidades. Também se sentia uma antiguidade perdida entre poeiras e lembranças. Nunca mais lhe pediu um filho. Trancou-se mais e mais no seu insólito mundo, até a monotonia parece-lhe segura e boa. Nada acontecia de novo, de bom ou ruim. Saberia dizer com precisão absoluta o que faria na tarde do dia seguinte. Era como um molusco encrostado, fechada e protegida no apartamento do decimo quinto andar. Aos finais de tarde bebia vodka, ouvido música clássica e olhando o resto do sol que morria, recostada na poltrona de coro escuro. Na certa ele diria-lhe que vinho era mais apropriado para ela. Mas vinho custava a inebriar-lhe, por isso preferia a vodka clara, transparente como água, que lhe lavava a lama das frustrações. Água magica, água do esquecimento e da euforia.
        Quase dez anos que estavam juntos. Tudo continuava como no primeiro dia. Até a indiferença dele era igual. Apenas o rosto de Georgette estava mudado. Mais cheio, maduro, quase bonito. Ele nunca lhe disse que a amava, mas também nunca disse que não. Ela achava que fazia parte da vida dele com a mesma importância das suas preciosas coleções.
       Uma noite, como não fazia há muito, ele chegou cedo, a tempo de jantarem juntos. Havia um silêncio pesado entre eles. E finalmente quando ele falou, as palavras fluíam tentando parecerem naturais. Georgette escutava, respiração ofegante, rosto lívido. As frases que ele dizia pareciam tão sem nexo, que ela só compreendia muito depois que ele havia falado. E quanto mais ele falava, mais parecia que tudo ruía ao seu redor. Seu mundo de monotonias e relíquias desabava sem que ela pudesse fazer nada.
        Ele iria se casar com uma ex-aluna. Moça nova, de boa família, chamava-se Letícia e casariam-se no mês de setembro, primavera, flores... ele falava, falava e ela fingia não ser com ela. Ficou rígida quando ele abraçou-lhe os ombros e disse-lhe para não preocupar-se, que ele não lhe deixaria na rua, que continuaria cuidando dela como sempre. Georgette finalmente compreendeu que nunca foi importante para ele.
     Com a voz chorosa, disse-lhe que ele não poderia casar com ninguém porque já era casado. Ele riu alto. Georgette tentava explicar entre lagrimas que não poderia viver ali sem a presença dele e das coleções, sem suas tardes de vodka. Nervoso, afagou os cabelos dela e disse-lhe que viria visita-la sempre e que arranjaria uma senhora para morar com ela. Entrou no banheiro tomou banho e disse que iria encontrar-se com a noiva. A porta bateu num eco surdo, deixando-a com o estômago contraído. Como em transe, Georgette foi até a cristaleira e, um a um, destruiu, quebrando como pedaços de sua vida, os preciosos biscuís chineses. Depois as xícaras antigas, os discos de cera e, finalmente, seu próprio corpo, lançado no vazio do decimo quinto andar.

... DE VOLTA AO PRESENTE

      Jamais compreendi você, minha Georgette. Naquela noite, ao voltar para o apartamento quase enlouqueci. Meus tesouros, lembranças conquistadas em viagens, visitas a antiquários, tudo em pedaços, cacos brilhando a luz morna do abajur. E quando lhe procurei, gritando infâmias e amaldiçoando seu nome, pensei que você havia fugido. O que de certa forma era verdade. A visão do seu corpo morto, de uma brancura leitosa, despertou-me o amor que sempre sentir por você, mas que estava adormecido entre minha vida lá fora e nossa monotonia aqui dentro.
      E tardiamente lhe amei e ainda amo. Amo as lembranças envoltas nos objetos tocados por você, que conviveram com você mais do que eu... Horas me vem à mente sua mão delicada segurando uma pequena xícara de porcelana decorada. Horas é o seu sorriso discreto como os vasos de cristais. Depois lhe procuro gente, no vidro de desodorante usado, na planta do banheiro, na bolsa de palha que usavas para ir à feira. Até mesmo em Letícia, agora adormecida ao meu lado, procuro o seu rosto indiferente, apático, entediado com o mundo e eu pensando ser comigo. Ah, Georgette, Georgette... 

(do livro “Psiu, O Síndico Pode Estar Ouvindo” -1987, Fortaleza/Ce)

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